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Mostrando postagens de 2020

Farofa com Cortázar

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O marido, sem nenhuma pretensão de se tornar escritor, lera os grandes clássicos, muitos deles no original. Mas Isa tinha preguiça dessa erudição. Apetecia-lhe a imersão nas narrativas que lhe dessem ganas, sem obrigação de reverenciar os cânones mundiais. Relia, inclusive e com certa culpa pela falta de tempo costumeira, as obras amadas anos atrás.  Isa era capaz de ler em inglês e espanhol, entretanto, sua alma onírica se sentia mais confortável em português. As traduções podiam às vezes derrapar, contudo Isa acreditava que a língua materna é exatamente o que o seu nome afirma: útero, aconchego, identidade. Percebera-se, no entanto, num dilema: estava sem novos livros de cabeceira. Havia saído de experiências densas com Milan Kundera e Patti Smith. Adoraria se embrenhar em histórias assombradas ou num rodopiante romance policial. Algo com cara de férias, enfim. Recorreu às estantes para se certificar de que não existiria nelas algum tesouro esquecido. Encontrou Laços de Família, da C

Estrelas

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Ah, os cães. Aliás, ah, os animais. No fim do dia de ontem, tão loooongo, de frustrações e de exaurimento, quem poderia imaginar que a ida à farmácia, perto das 22h, seria a recompensa, o bálsamo para a chaga do desalento. Levar um cão a tiracolo é sempre a oportunidade de encontrar leveza no mundo. Eis que nós voltando e eles vindo, um casal com um collie. Lessie em carne, osso, pelos e altivez. - É uma bonita ou um bonito? - Bonita. - E esse seu, não conheço, que raça é? - Corgi. - Corgi? - Sim, aqueles cachorrinhos da rainha Elizabeth. - Ah... As cachorras se reconheciam e Frida se portava com a indiferença inglesa blasé costumeira. - Ela é muito calma, né? - Sim, bem inglesa. Na dela. - E qual é o nome dessa belezura, perguntei afagando o focinho alongado, os pelos macios da nova gata, ops, cachorra da vizinhança. - Elizabeth Taylor! - KKKK! Rimos todos. - Eu sempre coloco nome de estrelas nos cachorros: Andie MacDowell, Meg Ryan e essa é Elizabeth Taylor. - Não poderia ter escolhi

Neurastenia

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"Não eram sonhos incompreensíveis, mas o delírio das horas vividas".  (Patti Smith) Neuroticismo em progressão é isto. Tive de me certificar de que não estava psicótica, pois quem sofre de psicose perde o contato com a realidade. A realidade ao meu redor está mais palpável do que gostaria. Padeço de hiper realidade, realidade aumentada, excesso do real. Os sons diários me enervam.  O caminhão de botijão de gás, por exemplo. Toda manhã aquele barulho de um batendo no outro, a acomodação natural na caçamba. É experimentar o Dia de Marmota sem a veia cômica de Bill Murray para aliviar. Os canos das motocicletas, cada passagem pela rua em frente mais histéricos. A vida delivery trouxe na garupa sedentarismo, obesidade e neurastenia auditiva. Sem falar nos escapamentos de carros envenenados, renascidos do inferno da década de 1970, quando éramos mais bárbaros do que hoje, se abjeto horror for possível.  Aliás, o Brasil todo retrocede a um estado de fundamentalismo neopentecostal o

LSD

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Cada dia mais andarilha. Alguns dias sem escrever bate a abstinência. Domingo tem a melancolia da queda  do império romano. Penso num pé de romā. Pé ante pé até Constantinopla.  Algumas horas ao ar livre nivela a endorfina.  Concordo: fungos são fotogênicos. Living beans: strange beings. Líquens funghis: alucinógenos.  Mofo  bolor: patógenos. Agáricos numéricos, ábacos da China, cogumelos de Paris.   A primavera  verdeja  a cor da umidade.

Os cinco elementos

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A chuva se arma para a batalha contra a terra. Convoca os aliados: ar de trovões e fogo de relâmpagos, lançados sobre as árvores assustadas. Sementes e folhas alcançam o solo como passos sorrateiros de gnomos invisíveis.  Uma barata cruza a calçada em busca de outro abrigo,  apressada. Nuvens grávidas, pesadas, sentem as dores do parto. Movimentam-se furiosas, em agonia. A chuva ameaça, se prepara para furar o bloqueio do chão compacto.  Boa parte das vezes, mera bravata. (sorte da barata e azar o meu)

Promoção de Peão*

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Tá rolando uma série da Netflix no radar apreciativo dos assinantes brasileiros: “O Gambito da Rainha”. A trama conta a história de uma menina de nove anos, orfã, que descobre no xadrez o refúgio para o mundo hostil ao seu redor. Ainda não vi nenhum episódio da temporada, porém já incentivei meus teens a assistir, pois eles curtem jogos de raciocínio.  Falar de xadrez me faz recordar que, aos nove anos, também órfã de pai e dona de mecanismos de defesa afiados, aprendi a dar o xeque-mate numa escola semi-interna na qual estudei. Ah, as conexões “tectônicas”, diria o primo-irmão, tirando sarro da minha mania de procurar a mão do inefável em tudo. Durante um único ano, frequentei a alta burguesia da cidade de Brasília, solução radical de mamãe, cuja viuvez com seis filhos jovens + a temporã cada dia mais moleca, não tinha a menor condição de me dar o mínimo de atenção (percebam o ato falho do copo vazio nos potentes substantivos empregados). Era uma escola ótima, para gente abonada. A id

Velhinha de primeiro mundo

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Os pés cada dia se parecem mais com os de mamãe. A pele se enruga e queda-se marcada em sulcos laterais. Pequenas manchas senis escalam canelas afora. Dedos calosos. Na região plantar, esporões sob controle. Ela os teria? Acho que não. Era de alma e modos casuais. Não usava salto alto. Porém, subia nas tamancas se achasse necessário.  As pintinhas se multiplicam em velocidade exponencial pela barriga, antebraços. Os cabelos brancos eclodem do ponto mais quente da cabeça, direto do centro do crânio. Daí se tira a conclusão de que o estresse contribui para o envelhecimento precoce? Precoce nada, são quase cinco décadas. Não se atravessa a metade de um século sem transformações físicas e sociais. A gente é que não quer dar o braço a torcer para o tempo. Fica naquela ladainha de melhor idade, igual a vinho, experiência e sabedoria.  Excesso de tempo dá osteopenia, isso sim. Envelhecer é porrada. Menopausa. Ora, ora, veja bem, pausa só fica bonita na música e na fotografia! Mas tem o outro

Secos&Molhados

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Cultivo amores por taperas, ruínas, escombros. O abandono das casas desabrigadas, antes cenas de algazarras. Ecoam cânticos ancestrais no que restou da nave de uma igreja de outrora. Outrora, a prima-irmã da aurora. A melancolia que habita as paredes descascadas se reconhece no espelho da minh’alma. Jogo de sedução:  atração entre o inefável e o incandescente Opostos se complementam entre o nascer e morrer. Ar alimenta fogo  energia geradora: vida.  Sol e nuvem não se cansam da rotina.  Não sou orquídea para viver numa estufa! Me acoplem à árvore mais próxima, deixem-me ao relento.  Selvagem é o ar que preciso, pois enlouqueço a olhos vistos.  Preciso fugir do cheiro nauseabundo de putrefação da delicadeza.  Encontrar o recôn(dito) de utopia que um dia esteve no genoma da cidade. Entreolho a entrequadra metáfora da fenda  entre nós. A destreza das mãos (re)pousa nas asas: Intrépidas? Inertes? Quem decide é a lepidóptera.

Chá verde com hibiscus

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“Penso no paraíso e fico noites em claro.” (Jandira Costa) Com quantas coincidências se tece uma conexão? Se for telúrica, são muitas, expressas e subjacentes. Antes de mais nada, o nome. Nomes são gatilhos para sentimentos de afeição ou de repúdio. Ela se chama Jandira. Imediatamente a estimo, posto vir a ser xará da minha madrinha, que assinava y no lugar do i. Ela passou dos setenta e, como minha sogra, habita a mesma superquadra da Asa Norte há mais de 20 anos. Acordam e sonham em apartamentos de igual metragem. Ambas guardam a cicatriz desconforme da ausência de um dos seios. Ambas são sobreviventes, pilares, matriarcas. À primeira vista, pareceu-me experimentar a oportunidade perdida de encontrar Hilda Hilst. Cada frase que Jandira falava era um verso, uma inteligência, um relâmpago de feminilidade viril. Posso te chamar de Lulu? eu gosto de Lulu. Podia ser Lua também. Eu amo a Lua. Claro que pode, hoje eu assino LuA em vários lugares, pois sou Luciana Assunção. Não é possível! O

#tbt

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O que temos para hoje… Humm, vejamos… Anexos anoréxicos (segundo o grande cronista Mario Prata, a palavra anexo tem barriga vazia, passa fome). Concordo. Solicitações de certidão de objeto "em pé". Achei fálico e vocês deduzirāo: só pensa naquilo. Xixi da cachorra no tapete gabbeb. Pedi ao pessoal da lavanderia aqui perto para buscar (já experimentou carregar um tapete de três metros no braço? Só não deve ser mais complexo do que se livrar de um corpo). Vocês matutarāo: como ela sabe? Frida recebeu os dois encarregados de limpar o trabalho sujo dela. Entreguei logo a autora do crime. Mas que bonitinha, né? Sim, para o bem dela, é uma fofa. Olha, a atendente te deu o valor errado, porque tô vendo aqui que é um gabbeb, né? É artesanal. Congelei, emocionada, por dois motivos: 1)ele era capaz de reconhecer um gabbeb enrolado e fétido. 2) Em quantos milhões consistiria a diferença entre o orçamento industrializado e o artesanal? Dez reais. Descongelei em tempo de assinar a ordem d

Fabulações

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Para sobrinho R odrigo, em sua 44ª primavera “Eu amo ficar de guarda-chuva, é o maior bom!”      (Tomás quase-de-Aquino) Basta um xererê e Brasília fica com ares de cidade velha. Da cabeça de mamãe brotavam palavras e expressões originais, verdinhas de estranhamento. Penso que uma parte delas era só fabulação de uma mulher de raiz plantada nos grotões de Goiás. Mas não é que xererê existe mesmo? Tem variação xereré e significa garoa, chuvisco ininterrupto, nevoeiro. O dicionário diz que é termo indígena usado pelas bandas de Mato Grosso. Encafifei. Talvez de lá tenha vindo o meu DNA de paraguaia falsificada. Mamãe haveria aprendido com o marido (minha metade negra e índia) ou as etnias nômades aportaram no centro do país com seus idiomas, fala de quilombolas? Kalungas? Nunca chegarei ao cerne dessa questão, infelizmente. A árvore genealógica da família tombou de velha, de esquecimento. Deve ser uma tal de munguengue, de frutos comestíveis. Mamãe costumava vaticinar: O dia hoje está mug

Mande notícias do mundo de lá...

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(...)O vermelho me atirava bem no fundo dos olhos: a sempre mesma tempestade de sangue. (Roberto Nicolato) Sim, mamãe sofreu demais. Devastador, pois a matriarca era solar, pessoa simpática pacas, de boas. Até hoje persigo a paz que ela exalava nos anos saudáveis. Não é brincadeira ver o amor da gente se esvair assim.  Deitei ao seu lado na cama do hospital. Aninhei-me junto ao calor febril que lhe restava. Soprei palavras de incentivo: descanse, corpo enfermo. Voe, alma livre de atribulações. A ave moribunda se debatia, agarrava-se às migalhas de lucidez. Esperava lembrar de todos, porém soltou apenas um pio reconhecível: o nome do tenro neto, cria da filha caçula. Saber que não o veria crescer lhe dera ganas de última hora? Ou seria só a vida em si, sempre muito cara e leve para ela, a lhe despertar a ânsia de reagir, de ficar boa e de meter as mãos na terra do jardim de casa. Acolher outra muda de planta furtada e furtiva, joias verdes como eram os olhos dela? Maria Cruz era o seu n

O trenzinho da candanga

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Texto sob encomenda me lembra os tempos de redatora publicitária. Tirar da cartola o slogan mágico para vender um produto quase sempre sem sal. Mas a imagem que suscitou o pedido não tem nada de vazia, é verdade. É que a amiga viu além da fotografia que tirei. Ela enxergou completude quando apenas mirei recorte. Eis o mistério da Arte (perceba a soberba em classificar minha fotografia como tal): você cria x e as pessoas fruem todo o alfabeto. Quem pode, pode, e essa amiga carrega galáxias dentro dela. Daí topei o desafio. Olhei para o momento capturado de novo. A atração pelo abismo e pelos trens. A inesgotável ânsia de viagens. Ouvi o som monocórdico dos vagões pesando sobre os dormentes. Eu ali, da janela, entre Brasília e Uberaba. De Berlim para Praga, contemplando as árvores e os casebres. O mato virgem, as monoculturas depressivas... Vaquinhas à sombra para despistar o calor, cavalos nas pastagens. Uma estação abandonada, outra a fervilhar: parada obrigatória. O vão entre o trilho

Mafalda

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"Cada buraco do que sou reivindica ar enquanto os pulmões permanecem cheios na utopia de um útero capaz de embalar o caos” (Isabela Bosi) Nome: Data de Nascimento: Data da última menstruação: Casos de câncer de mama na família? É diabética? Tenso interrogatório dos exames de rotina femininos. Encostam a faca em nosso pescoço e torturam nossos seios na fria prensa. Autômatas e angustiadas aguardamos na fila para ter nossos corpos manuseados como sempre foram: por mãos estranhas, desconectadas de nossos desejos. Cada mulher sentada sobre a própria solidão é uma ostra a gerar óvulos e colares de pérolas para presentear porcos (mas também o universo).

Posto que é chama...

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Para Bernardo Mello A vida é a noiva do Frankenstein. Combina coisas e pessoas desconjuntadas num mesmo tempo-espaço. Um prato de self-service no qual você mistura fricassé de frango com salada de berinjela. A eterna insistência de unir o que é desunido por natureza. Murro em ponta de faca. Água mole em pedra dura. A vida só é possível reinventada. Cabal. Entretanto, viver se desenrola pelas reticências até o ponto final. Um e-mail sem descrição do assunto. Um assunto sem o conteúdo da mensagem. Rotina espantosa. Sustos previsíveis. Opostos que se atraem para se repelirem com aversão após o décimo desencontro. Para morrer basta estar vivo. Mas como quantificar o basta: bastante, apenas o suficiente? Vegetais também são seres vivos. Micro-organismos existem, tal qual moscas e ratos. Todos vivinhos da Silva. Pior, barata. Lépida, até avoa. Viver é muito perigoso: dá ideias, ganas. A vida é sertão árido que abriga o oásis para quem tem sede de cruzá-lo. É densa floresta onde se perde o en

Bolero ao meio-dia

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Estacionei o carro nas vagas enfileiradas do bloco de apartamentos. Como uma pontada, veio a imagem de minha mãe parando o carrinho prata dela no mesmo local, sempre animada para ver a filha e os netos. Fechei os olhos e lembrei imediatamente de um poema escrito na juventude. Não era para a minha mãe, claro, os amores juvenis são tão passionais. Mas hoje passa a ser. Sentimento de orfandade também é visceral. É nas segundas que sinto saudade de ti. Na preparação do jantar sozinha, mastigando pensamentos confusos na cozinha fria e bagunçada. É quando entro em meu quarto que sinto saudade de ti. Arrumando roupas espalhadas como as tuas que também já estiveram assim, tantas... Nua na cama sinto saudade de ti. Na doce preguiça de não ler, não escrever ou na poesia que finjo te dar. É quando consulto minha agenda e repito os pequenos rituais da vida que sinto saudade de ti. E quando estou cansada, à beira do precipício, também sinto saudade de ti. Porque acompanhar teus gestos distraídos ac

Senti(n)do

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Música para os ouvidos é o shhhzzz do pneu no asfalto molhado. A onomatopeia invade a manhã mais clara do que o sol, cansado de sua onipresença. Luz gris da primavera flores se mostram em relevo sobre o cinza ainda invernal. Caules caiados despontam como mãos em prece. Folhas se alongam debaixo da ducha de chuva. Ecoam as árias-pássaras de gargantilhas límpidas. O canto é um cristal. A natureza toda se banha de transparência. Venta suave e úmido. Septos nasais e pulmões absorvem a prenhez primaveril: abastecem-se de estupor juvenil. O frescor atinge níveis moleculares. Renovação de votos: (tudo o que desejares).

Extremófilos

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O breu da chuva é a única escuridão bem-vinda no Planalto Central, morada de seres extremófilos*, fustigados pelos limites da aridez quase caatinga. O som do trovão não amedronta. Soa melodioso aos ouvidos sedentos. As folhas se voltam para o alto. Nosso coração está no céu que desabafa choro copioso, guardado tanto tempo no peito das nuvens, antes pálidas e reprimidas. Agora, densas e coradas de tempestade. É um marco, um acontecimento, uma mudança de estado físico: do pó à lama.  Relampeja. Apenas os cães se escondem debaixo das camas ou das mesas. Os demais rejubilam-se: aleluia! Por suposto, a chuvarada atrai também um câmbio do estado de alma: da avareza para a abundância. Dos humores ressequidos aos sorrisos de estamparia, aos suspiros aliviados. Uns vão se entediar daqui a pouco com a temporada tempestiva. Outros vão sair cantarolando, dando a máscara à tapa. Com o cheiro de terra molhada, retorna um sentimento familiar. Os ciclos naturais se repetem, mas quanto a nós, seremos a

Escrutínio

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"A arte de perder não é nenhum mistério; Tantas coisas contêm em si o acidente De perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero, A chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério"... (Elizabeth Bishop) Sentaram-se frente a frente, olho no olho. Cara limpa, sem máscaras de ambas as partes. A proximidade era menor do que os dois metros recomendados. Sentada, uma tinha a altura da outra, de pé. Foi nesse momento que se perceberam em profunda intimidade. Iniciou-se um escrutínio mútuo. A que sentou carregava um sorvete. Fazia muito calor. A manhã havia sido de dores de cabeça, problemas internéticos. Ela merecia aquela travessura: duas bolas na casquinha. A que estava de pé, estoica, observava a outra a se deleitar com a estripulia cremosa. A língua sorvia o frio e a doçura. Lábios e olhos se fechavam na sincronia do desejo satisfeito. Sentiu inveja daquela mulher sentada à distância de um toque, porém inatin

Transeuntes

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A calçada ali na frente é um recorte colorido e barulhento da cidade. Microcosmo em atividade quase incessante. Breves pausas noturnas, entre as horas mais quentes. No mais, pulsa o ritmo da rotina em passos esportivos, de scarpins, chinelos.  Rodas da bike transportam ganha-pão ou só diversão. Lamento de bebês nos carrinhos vigiados por pais zelosos, babás cansadas; pais cansados, babás jovens. Há os que caminham sozinhos, o grupo de amigos, casais hetero e homo. Duplas femininas e masculinas. Sombras e sóis, chuvas e saruês. Vai e vem de velhos, de moradores de rua, de transeuntes perdidos de si mesmos. Alguns ouvem música, uns ouvem os pássaros. O ruído dos carros e das motos é constante, assim como dos latidos dos cães de variados tipos e tamanhos. Há noites invadidas pelo ressoar de cascos no concreto. Algazarra infantil dos dias de abril tem também. Às vezes passa o maluco da quadra a gritar impropérios. Noutras tardes, o clarinetista de Pã. Sirenes de ambulâncias e da polícia po

Namoradeira

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Ando com um delay de datas, como se já não me importasse em ser precisa, em demarcar o tempo de calendário. Distingo claro e escuro, lua e sol, sete horas de trabalho e as demais de pouco sossego. Mas conto os minutos para ver a chuva de novo. Todo ano a resistência e a resiliência do existir calango-candango no pó de quatro meses sem uma gota do céu. Água, só das lágrimas. Soube que foi celebrado o dia do cerrado dia desses. Taí, não se ama o cerrado do dia para a noite. Ao menos não foi assim comigo. Precisei curtir o afeto em barril de baru, pequi e gueroba por secas e por trovoadas, secas e trovoadas até que fosse capaz de entender tamanho sofrimento do homem e das árvores contorcionistas. Braços-galhos a suplicar pela compreensão de tão dramática e tortuosa trajetória-convivência. De alguns verões para cá, passei a enxergar beleza contida na feiúra. Porque amar a florada do ipê não é digno de nota. Reparar no carmim da calliandra é de lei. Evoluí ao verso de Adélia Prado: "qu

Gorjeios

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rastros resquícios remains of the day vestígios datados reminiscências reticências memórias falhas folhas restos sombras traços resíduos úmidos húmus vésperas recitam  enClave de Sol. A lua na rua, nua. A nuvem, fuligem, pluma. O pássaro no poste, sofre: anseio de beijá-la.

Dreamline

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"Você deve compreender-me se eu quiser sonhar"... (Márcio Greyck, do cancioneiro brega da década de 1970) "Pendurei velhos fantasmas, no armário. Tranquei as portas, apesar da existência das frestas". (Paula Valéria Andrade) Existem pessoas com quem sempre sonhamos e outras como quem nunca sonhamos. Não se trata de viagens oníricas recorrentes ou iguais, tal qual pesadelos obsessivos, terrores noturnos que alguns sofrem ao longo da infância ou até mesmo na vida adulta. É sonho diferente, mas com a mesma pessoa, entende? Por que invocamos uns com maior frequência do que outros?  Penso que não tem relação com a intensidade do amor, não. Há gente que amo pacas e com as quais nunca tenho um sonhozinho sequer. Tampouco tem a ver com desgosto. Pode ser um sinal de saudade. De incompletude. De insegurança. Do sentimento de inadequação ou de inacessibilidade. De projeções. Por exemplo: sonho muito com uma grande amiga desde 1989. Brinco que ela é o meu alter-ego onírico. De

Sânscritamente

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Japamala. Japamala. Preciso mentalizar a palavra 108 vezes para não trocar as sílabas e dizer jamapala. Ainda hoje me confundo, as distrações da mente. Japamala, um rosário hindu. Acho bonito usá-los como colares, católicos ou indianos. Me sinto monástica, metafísica, metafórica, alegórica. Sempre gostei daquelas pessoas com vários cordões no pescoço, mistura da estampa das roupas com pedras e prataria de diferentes comprimentos. Se tivesse uma cervical que prestasse, seria a senhora penduricalhos. Ontem revi a mestra e amiga de tantas práticas e ensinamentos yogues. Lá estava ela, se tornando uma sábia árvore de vasta e generosa copa prateada. O companheiro japamala a adornar o colo. Ela foi a primeira mulher que vi ao vivo a desfilar com eles. Quando nada sabia de evolução espiritual, achei se tratar de colarzinho hippie feito de sementes vendido aos montes em Arembepe. Não tinha ideia de sua mística meditativa. Agora, só de vestir o japamala que ela me trouxe de presente do país dos

Nude

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A lua na rua, nua. A nuvem, fuligem, pluma. O pássaro no poste, sofre: anseio de beijá-la.

Pseudopoema

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Para a tia do coração, Socorro Melo A tabuleta da banca de verduras diz: temos cajú. O nome não tem acento, mas, assim, fica mais suculento. O sinal agudo é o fio que pinga ao mordermos a carne fibrosa do pseudofruto. A seiva travosa escorre pelas mãos e o aroma adentra pelas narinas. Saudades das várias Teresinas... Cajúúúú, assovia o nordeste vento.

Ao natural

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A nuvem não tá pra chuva, mas faz pose coraçãozinho, como se fosse pedir perdão pelo estresse hídrico imposto ao cerrado nessa época do ano. Ao ipê resta gritar em florada de decibéis agudos.  Quanto mais sedento, tanto mais florido. Mágica: extremo sofrimento parir tamanha beleza.  O nome é masculino, porém o ipê é uma mulher que pare um filho por ano.  Naturalmente.