Postagens

Mostrando postagens de janeiro, 2021

Limbo

Imagem
Experimento a inércia do motorista de táxi parado no ponto (morto). Anseio pela chamada, rodar a engrenagem. A quadra já não me cabe. Procuro outra natureza. Caminho a esmo no ermo. A cidade está enfeitiçada por um calafrio quente: faz os poros pingarem atrás da máscara. Tudo agora está escondido sob o véu do imponderável. E da distância segura. Até onde há prevenção contra as plagas do isolamento e do limbo na paisagem envolta em sóis e luas incansáveis?  Acho que prefiro ser uma árvore quando morrer. O rio e o mar apraz mirar. Mas uma existência líquida, fluida: armadilha. Preciso de raízes para evitar o escapismo de um espírito travesso. Braços-galhos; mãos-gravetos esqueléticos durante o inverno implacável.  Embora seja rascante a decisão: conhecer o deleite das quatros estações enquanto sequoia, implicaria postura temperada, sóbria. O abandono da exuberância atlântica; das maritacas, bromélias e dos palmitais.   Delírios, pensamentos-pássaros na tarde de verão. Hoje, a vida é nebu

Diabólicas

Imagem
Assumir a paixão por lichias, em tempos de fobia à China, acrescenta uma picante pitada subversiva à vida. Sem falar no vermelho intenso da casca, reação alérgica aos extremistas de direita.  Litchi chinensis , quase uma Nietzsche, é demasiada humana: tem sabor e aromas delicados; aura translúcida protegida por uma casca rusguenta. Num país onde generosa fatia da população carrega alma rude com invólucro “cidadão de bem”, não poderia ser mesmo popular a fruta de preço salgado que aprendi a amar com a minha mãe. Logo que chegou ao meu microcosmo, num fim de ano qualquer da adolescência, era de valor proibitivo. Mamãe comprava apenas uma única embalagem, deleitada como pecado por nós duas. Tornamo-nos cúmplices da luxúria numa casa de dinheiro contado. Ou seja: além de chinesa e esquerdista, lichias também são diabólicas. Li por aí: quem gosta de uva e de jabuticaba naturalmente arrasta asa para a lichia. Não é o meu caso. Troco, de boa, um pé de jabuticaba por uma lichieira. Nunca enten

Asco inspirador

Imagem
Todo bom nome da literatura escreveu ao menos uma ode à repugnância das baratas. Ainda bem que já publiquei a minha, pensou satisfeita, e soltou uma gargalhada solitária e autoindulgente, balançando a cabeça em negação com a piada besta que acabara de lhe ocorrer. O fato é: Kafka, Lispector e Cortázar fizeram milhões de leitores revirar as entranhas com suas protagonistas cascudas. Certamente haverá outros escritores ainda não lidos cujas vaidades aceitaram o desafio: narrar a inquietante intimidade anatômica e comportamental do inseto mais asqueroso da cadeia alimentar dos, dos, dos… gatos? Não, não, não queria sequer se lembrar disso. Ainda estava assombrada pelo conto de Julio, a mareá-la como se estivesse numa roda gigante ou sofresse de labirintite.  A história ia e voltava, ia e voltava de seus pensamentos numa mescla de pavor com reverência. Puta que pariu, esse cara escreve. Levara quase 50 anos para descobrir, pois resolveu, sem recomendação de amigos, de algum crítico literár

Horror no paraíso

Imagem
Todas as manhãs ela faz a varredura entre as ondas e a areia. Ela não está à procura de tesouros valiosos regurgitados pelo mar. Seu detector não é de metais, a cobiça é outra: nácar, carbonatos de cálcio espiralados, estrelas do mar calcificadas, búzios a sorrir sem dentes. "Mas é mesmo bela e banguela a Guanabara"... Serão as conchas todas iguais em variedade de formas e de tamanhos ou cada memória da vida do antigo habitante deixa uma marca indelével? Gostava de se imaginar pessoa frágil, molusco abrigado lá no fundinho da carapaça tenaz. Ou de fato era de natureza mole, inconsistente? Ideias lhe passam pela cabeça e são levadas pelo vento incessante do litoral. O marido havia explicado o porquê dessa perene força eólica, mas as explanações exatas às vezes lhe escapam.  Ela seguia o trajeto, ritual de ajustar a visão míope, virando o rosto da esquerda para direita, ao redor dos próprios passos. Ânsia em capturar os exemplares exóticos. Há dias com sorte e há dias iguais. I

Bálsamo

Imagem
Há coincidências que se materializam como se pedissem para ser relatadas, pensou, elaborando um sorriso.  Ainda fechado? Mas já passa das sete... Imediatamente uma das folhas do portão se abriu e deu passagem. A mão mágica do anjo vento: seja bem-vinda!  Ela atravessou o portal e saudou a solicitude das ondas oferecidas. Venha, diziam, porém Liz não se entregava fácil, reservada que era em relação aos mistérios aquosos.  Com o mar, sua atitude assumia ares de reverência. Entidade para ser louvada à certa distância. Arisca, preferia o recato do amor platônico a mergulhar de cabeça.  Entretanto o som, o som da arrebentação... Unguento para almas escaldadas; mantra em percurso contrário: de fora aos poros. Desconcertada, Liz percebeu que não era preciso de esforço meditativo algum. O Atlântico, generoso, fazia isso por ela.  A palavra azimute estava no encalço de suas divagações desde que chegara à praia.  Árabe, talvez?  Liz nunca se esquecera do funcionário da embaixada a lhe fazer a me