Fabulações


Para sobrinho Rodrigo, em sua 44ª primavera

“Eu amo ficar de guarda-chuva, é o maior bom!”
    (Tomás quase-de-Aquino)

Basta um xererê e Brasília fica com ares de cidade velha. Da cabeça de mamãe brotavam palavras e expressões originais, verdinhas de estranhamento. Penso que uma parte delas era só fabulação de uma mulher de raiz plantada nos grotões de Goiás.

Mas não é que xererê existe mesmo? Tem variação xereré e significa garoa, chuvisco ininterrupto, nevoeiro. O dicionário diz que é termo indígena usado pelas bandas de Mato Grosso.

Encafifei. Talvez de lá tenha vindo o meu DNA de paraguaia falsificada. Mamãe haveria aprendido com o marido (minha metade negra e índia) ou as etnias nômades aportaram no centro do país com seus idiomas, fala de quilombolas? Kalungas?

Nunca chegarei ao cerne dessa questão, infelizmente. A árvore genealógica da família tombou de velha, de esquecimento. Deve ser uma tal de munguengue, de frutos comestíveis. Mamãe costumava vaticinar: O dia hoje está muguengue, sem o primeiro ene.

Cacei no dicionário e encontrei munguengue: nome popular de uma anarcadiácea. Garimpei mais fundo e descobri se tratar de uma cajazeira. O porquê da palavra ganhar outra conotação na cachola de mamãe, mistério. Olhando uma imagem da árvore carregada de frutas, nota-se os galhos um pouco arriados, exaustos do peso da procriação.

Imagino o quintal da casa-sede da fazenda Jerivá (uma palmeira) onde ela cresceu, fincada no município de Goiabeiras (mais árvore), na atualidade, Inhumas (ave feia, com jeitão de urubu). Certamente existia por lá um pé de cajá que se quedava muguenge após uma noite inteira de xererê.

Tal igual agora, quando a cidade amanhece ensopada, enrugada e lívida; secular e fecunda. As heras aceleram nas ruínas, teias preenchem o vácuo, musgos revestem os muros.

Cem anos de prenhe solidão.


Comentários

  1. Parabéns, Luciana! Adoro seus textos!

    Aline Cardia

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  2. Obrigado pela linda homenagem! Incrível sua capacidade de criar belos textos diariamente! Em relação as expressões corriqueiras que crescemos ouvindo de Dona Maria, tenho encontrado várias delas com o convívio de Andréa Santos, oriunda do Recife. Numa reflexão rasa acredito que esse nosso Brasil tem essa mistura maravilhosa de costumes e "dialetos", cada um com seu regionalismo, mas formado nas mesmas origens...

    Rodrigo Assunção Holanda

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  3. Adorei o texto. Diria que tá supimpa. O quanto se enraíza de memória lexical quando catamos essas palavras, não? E a Etimologia é uma Tia muito legal (outra área que me deixa mesmerizado).

    André Ricardo Aguiar

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  4. Memórias e heranças que não tem preço, né? Sabedoria popular! Um tio jornalista escreveu alguns livros em homenagem a minha avó materna em conjunto com a família, muitas histórias cheias de amor, mas principalmente curiosidades que foram eternizadas com o tempo. Vou procurar um trecho que eu acho muito legal, fala inclusive de palavras inusitadas que a gente sequer imagina como foram criadas. rsrs

    Anna Luiza Lima

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  5. Texto legal demais!!

    Mônica Ramos Emery

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  6. Adorei ! Minha família tb tem palavrinhas que só quem é raiz entende.

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  7. A língua e Dona Maria: pródigas de generosidade.

    Magno Rocha

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  8. Muito interessante a forma como você escreveu esse texto, Lu!

    Leila Brandão

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  9. Lá em casa, minha mãe ralhava, quando estávamos de mungangos, palavra angolana, arremedo, pantomima zombeteira. Éramos dez filhos. Há indícios de que tive uma bisavó negra.

    Luiz Martins da Silva

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  10. Lu, quantas saudades da tia Maria e das sabedorias dela.

    Bjos,

    Eni Assunção

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  11. Bom-dia, Lu!

    Criatividade o tempo inteiro em você!

    Patrícia Dellany

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  12. Que lindeza de herança. A riqueza cultural da nossa língua me encanta. Texto lindo, Lu.

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  13. Lindo, Lu!

    Renata Assumpção

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  14. Delícia de texto. A palavra e suas texturas, tessituras, ternuras. Muito bom!

    Emmanuel Ramirez

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  15. Ohh, que lindo! Já sou íntima da sua mãe, da sua madrinha e da sua linhagem feminina. Um feminino bem cuidado o da sua família.

    Bianca Duqueviz

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  16. Que dom abençoado que Deus lhe deu! Escritora de mão cheia, de uma inteligência ímpar. Parabéns!

    Ambrosina Militão

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  17. Todo mundo tem um pé no Brasil rural ! Eu pelo menos tenho , graças a Deus.
    Meus pais e tios protagonizaram o êxodo urbano. Eu, os meus irmãos e primos carregamos dentro de nós muito dessa influência.
    Eu queria ter o seu dom para descrever esse Brasil que conheci q e que vai ficar no passado cheio de histórias que ninguém soube escrever.
    Acho que por isso gosto tanto de ler seus textos. Tenho uma inveja boa e me sinto dentro deles já que n consigo retomar minhas histórias.
    Bem, a vida é curta mesmo . Continue escrevendo que é um tempo bem gasto.

    Karla Liparizzi

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  18. Ameil!

    Ângela Sollberger

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