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Mostrando postagens de outubro, 2020

Chá verde com hibiscus

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“Penso no paraíso e fico noites em claro.” (Jandira Costa) Com quantas coincidências se tece uma conexão? Se for telúrica, são muitas, expressas e subjacentes. Antes de mais nada, o nome. Nomes são gatilhos para sentimentos de afeição ou de repúdio. Ela se chama Jandira. Imediatamente a estimo, posto vir a ser xará da minha madrinha, que assinava y no lugar do i. Ela passou dos setenta e, como minha sogra, habita a mesma superquadra da Asa Norte há mais de 20 anos. Acordam e sonham em apartamentos de igual metragem. Ambas guardam a cicatriz desconforme da ausência de um dos seios. Ambas são sobreviventes, pilares, matriarcas. À primeira vista, pareceu-me experimentar a oportunidade perdida de encontrar Hilda Hilst. Cada frase que Jandira falava era um verso, uma inteligência, um relâmpago de feminilidade viril. Posso te chamar de Lulu? eu gosto de Lulu. Podia ser Lua também. Eu amo a Lua. Claro que pode, hoje eu assino LuA em vários lugares, pois sou Luciana Assunção. Não é possível! O

#tbt

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O que temos para hoje… Humm, vejamos… Anexos anoréxicos (segundo o grande cronista Mario Prata, a palavra anexo tem barriga vazia, passa fome). Concordo. Solicitações de certidão de objeto "em pé". Achei fálico e vocês deduzirāo: só pensa naquilo. Xixi da cachorra no tapete gabbeb. Pedi ao pessoal da lavanderia aqui perto para buscar (já experimentou carregar um tapete de três metros no braço? Só não deve ser mais complexo do que se livrar de um corpo). Vocês matutarāo: como ela sabe? Frida recebeu os dois encarregados de limpar o trabalho sujo dela. Entreguei logo a autora do crime. Mas que bonitinha, né? Sim, para o bem dela, é uma fofa. Olha, a atendente te deu o valor errado, porque tô vendo aqui que é um gabbeb, né? É artesanal. Congelei, emocionada, por dois motivos: 1)ele era capaz de reconhecer um gabbeb enrolado e fétido. 2) Em quantos milhões consistiria a diferença entre o orçamento industrializado e o artesanal? Dez reais. Descongelei em tempo de assinar a ordem d

Fabulações

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Para sobrinho R odrigo, em sua 44ª primavera “Eu amo ficar de guarda-chuva, é o maior bom!”      (Tomás quase-de-Aquino) Basta um xererê e Brasília fica com ares de cidade velha. Da cabeça de mamãe brotavam palavras e expressões originais, verdinhas de estranhamento. Penso que uma parte delas era só fabulação de uma mulher de raiz plantada nos grotões de Goiás. Mas não é que xererê existe mesmo? Tem variação xereré e significa garoa, chuvisco ininterrupto, nevoeiro. O dicionário diz que é termo indígena usado pelas bandas de Mato Grosso. Encafifei. Talvez de lá tenha vindo o meu DNA de paraguaia falsificada. Mamãe haveria aprendido com o marido (minha metade negra e índia) ou as etnias nômades aportaram no centro do país com seus idiomas, fala de quilombolas? Kalungas? Nunca chegarei ao cerne dessa questão, infelizmente. A árvore genealógica da família tombou de velha, de esquecimento. Deve ser uma tal de munguengue, de frutos comestíveis. Mamãe costumava vaticinar: O dia hoje está mug

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(...)O vermelho me atirava bem no fundo dos olhos: a sempre mesma tempestade de sangue. (Roberto Nicolato) Sim, mamãe sofreu demais. Devastador, pois a matriarca era solar, pessoa simpática pacas, de boas. Até hoje persigo a paz que ela exalava nos anos saudáveis. Não é brincadeira ver o amor da gente se esvair assim.  Deitei ao seu lado na cama do hospital. Aninhei-me junto ao calor febril que lhe restava. Soprei palavras de incentivo: descanse, corpo enfermo. Voe, alma livre de atribulações. A ave moribunda se debatia, agarrava-se às migalhas de lucidez. Esperava lembrar de todos, porém soltou apenas um pio reconhecível: o nome do tenro neto, cria da filha caçula. Saber que não o veria crescer lhe dera ganas de última hora? Ou seria só a vida em si, sempre muito cara e leve para ela, a lhe despertar a ânsia de reagir, de ficar boa e de meter as mãos na terra do jardim de casa. Acolher outra muda de planta furtada e furtiva, joias verdes como eram os olhos dela? Maria Cruz era o seu n

O trenzinho da candanga

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Texto sob encomenda me lembra os tempos de redatora publicitária. Tirar da cartola o slogan mágico para vender um produto quase sempre sem sal. Mas a imagem que suscitou o pedido não tem nada de vazia, é verdade. É que a amiga viu além da fotografia que tirei. Ela enxergou completude quando apenas mirei recorte. Eis o mistério da Arte (perceba a soberba em classificar minha fotografia como tal): você cria x e as pessoas fruem todo o alfabeto. Quem pode, pode, e essa amiga carrega galáxias dentro dela. Daí topei o desafio. Olhei para o momento capturado de novo. A atração pelo abismo e pelos trens. A inesgotável ânsia de viagens. Ouvi o som monocórdico dos vagões pesando sobre os dormentes. Eu ali, da janela, entre Brasília e Uberaba. De Berlim para Praga, contemplando as árvores e os casebres. O mato virgem, as monoculturas depressivas... Vaquinhas à sombra para despistar o calor, cavalos nas pastagens. Uma estação abandonada, outra a fervilhar: parada obrigatória. O vão entre o trilho

Mafalda

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"Cada buraco do que sou reivindica ar enquanto os pulmões permanecem cheios na utopia de um útero capaz de embalar o caos” (Isabela Bosi) Nome: Data de Nascimento: Data da última menstruação: Casos de câncer de mama na família? É diabética? Tenso interrogatório dos exames de rotina femininos. Encostam a faca em nosso pescoço e torturam nossos seios na fria prensa. Autômatas e angustiadas aguardamos na fila para ter nossos corpos manuseados como sempre foram: por mãos estranhas, desconectadas de nossos desejos. Cada mulher sentada sobre a própria solidão é uma ostra a gerar óvulos e colares de pérolas para presentear porcos (mas também o universo).