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Mostrando postagens de fevereiro, 2021

Pandemônio

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Para as Macabéas que há em nós A tarde ainda minava, não do centro da terra, mas da abóbada celeste. Um pingo caiu na testa da moça, contudo ela não interrompeu o fluxo da gota, que atravessou os cílios e desaguou no olho direito. Transformou-se numa "furtiva lágrima", belo título da obra de Nélida Piñon. E, antes dela, o nome da última ária de uma ópera de Donizetti.  Sombrio entardecer. O sol se esquivou das responsabilidades de verão. Anda fazendo pouco caso: aparece e se manda, exausto do posto de astro-rei. Se ao menos pudesse abdicar da monarquia tal qual o tal Harry... Deu um perdido e as nuvens tomaram a cena. Dramáticas e sensíveis, não se importam em chorar como carpideiras. Aliás, nada mais apropriado para o momento do que o lamento copioso e ininterrupto dos céus diante de um país de mortos e de moribundos, constatou a donzela enquanto pulava uma poça, tentando não molhar o sapato que comprara não havia dois meses.  Maldita lama nas calçadas e na política!, bufou,

Vagalumes

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"Azul porque é cor, e cor é feminina". (Gilberto Gil) A noiva cega procura o seu vestido ideal para dizer SIM. Ela busca o brilho do sol na praia que sentiu quando foi pedida em casamento. A noiva perdeu a visão há cinco anos. Ainda recorda o longo de sua formatura. Pensou em algo parecido: frente única, discreto brilho. Entretanto, não sabe mais como é o próprio corpo. Não tem mais a dimensão 3D de si mesma. Não pode mais se admirar no espelho.  Experimentou o primeiro modelo e se postou na frente da mãe, da tia e da futura sogra. Me sinto como uma raposa na neve, afirmou. A imagem emocionou os presentes, porém não ao trio de mulheres. Essas não enxergaram a beleza daquela cena: uma raposa lépida na planície ártica. O segundo vestido apresentava pedrinhas, lantejoulas atadas à saia godê. Transluziam. A noiva tocou no tecido e deu um grito contido de êxtase: eu vi, eu vi o brilho!   Os 5% da visão que lhe restaram captou o reflexo solar no oceano Atlântico daquele dia mágico.

Umidade do ar: 90%

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Caminho escorregadia. Há musgo, lama e poças que nos mostram um mundo invertido. As árvores às vezes não resistem aos solavancos do deus Éolo, a atiçar seus oito ventos. De velhice ou de poda tombam. Flores e folhas aladas pousam em bandos sobre o gramado.  A cidade nunca esteve tão úmida.  Fevereiro chora as decepções de um pierrot sem serpentina. De um país sem vacina.  Trovoa e a cachorra se dana a correr para casa. Não sabe que a bronca não é com ela, porém com os demogorgons de bem.  As lacrimosas nuvens encharcam as mucosas da terra.  Também evitam o ressecamento das artérias do meu coração.

Anotações de meia-idade

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"na chuva procuro um poema que me leve enxuto enquanto minh’alma enxurrada escreve versos agarrados em barquinhos de papéis" (Reginaldo Gontijo) As manhãs da semana estão modorrentas. Aliaram-se num pacto para retardar o cinquentenário.  Aos 40, minha mãe morria. Aos 50, é a pandemia a matar mais rápido e tristemente do que o câncer que a dizimou. Dizimar soa dramático, contudo é o verbo para alguém que sucumbe dia após dia, perdendo o contato com a realidade de si e dos que lhe amam.  Comecei a escrever uma espécie de inventário da primeira metade da minha vida. Cheirou à autoindulgência. Cheguei ao ano de 2001 e me senti exaurida de tantos acontecimentos. Naquele ano, então: morar nos EUA; testemunhar o atentado às Torres Gêmeas... Hoje, Marisa, irmã de data-natal invertida (12-02), faz 60 anos. No próximo domingo, sigo no encalço dela, com dez anos de atraso (lapso temporal que lhe fez conhecer e conviver com um arranjo familiar totalmente distinto do meu, moldando nossos

Dilema

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Quando tudo repousa é a hora espectral. Um fantasma circula pela casa a dois centímetros do chão. Com suas mãos fluidas, toca os objetos. Portas de correr deslizam como nuvens Ruídos são mínimos, calçam pantufas. Ninguém acorda além dela, atenta às sombras da noite. Instigante solitude esquiva: capturar ou cooptar?

Odoyá e afins

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Iconoclasta pela metade: adora imagens sacras e angelicais ao mesmo tempo em que almeja desmontar dogmas religiosos, opiniões estabelecidas e tradições sem pé nem cabeça. Não condena estátuas de santos, muito pelo contrário, fotografa, até coleciona.  Também não se considera a antítese do destruidor de templos ou de altares. Poderia, então, ser definida como iconolatra? Veneradora de ícones? Sim, mas de meia-tigela. Nunca foi de fã-clube. Apesar de haver chorado em frente da Adélia Prado. Talvez desmaiasse na presença de Drummond ou de Quintana.  Rosários, signos, símbolos, anjos. Ela tem apreço por objetos espirituais; por rituais e por ritos de passagem. Aqueles dos quais emanam a metafísica quase palpável.  No caso dela, valia uma variação de Aristóteles: o homem é um animal político, mas também simbólico.  Viajando nessa maionese, descobriu um filósofo alemão Ernst Cassirer (1874-1945), de inspiração neokantiana, autor de “Filosofia das formas simbólicas - A linguagem”, estudo no q