Mande notícias do mundo de lá...




(...)O vermelho
me atirava
bem no fundo
dos olhos:
a sempre
mesma
tempestade
de sangue.
(Roberto Nicolato)


Sim, mamãe sofreu demais. Devastador, pois a matriarca era solar, pessoa simpática pacas, de boas. Até hoje persigo a paz que ela exalava nos anos saudáveis. Não é brincadeira ver o amor da gente se esvair assim. 

Deitei ao seu lado na cama do hospital. Aninhei-me junto ao calor febril que lhe restava. Soprei palavras de incentivo: descanse, corpo enfermo. Voe, alma livre de atribulações.

A ave moribunda se debatia, agarrava-se às migalhas de lucidez. Esperava lembrar de todos, porém soltou apenas um pio reconhecível: o nome do tenro neto, cria da filha caçula. Saber que não o veria crescer lhe dera ganas de última hora? Ou seria só a vida em si, sempre muito cara e leve para ela, a lhe despertar a ânsia de reagir, de ficar boa e de meter as mãos na terra do jardim de casa. Acolher outra muda de planta furtada e furtiva, joias verdes como eram os olhos dela?

Maria Cruz era o seu nome. Sim, foi um calvário aquela doença injusta. Se carregasse Bueno, o sobrenome da mãe, teria sido agraciada com uma morte tranquila e digna?

Aos poucos parou de bater as asas. A respiração se acalmou na presença dos cinco filhos de pé, ao redor, atingidos pelo desamparo. O sétimo, na verdade o primogênito, não chegou em tempo de vê-la agarrar-se ao suspiro débil da existência. 

Sabíamos, atônitos descendentes: era preciso extinguir a insistente relutância daquele espírito indômito até o fim. 

A angústia da colibri cedeu à compaixão da médica e à súplica dos rebentos. Pronto, acabou. Com o ouvido esquerdo decretei o momento do óbito: o coração da mamãe parou de bater, disse. O peso da laje desabou sobre o quarto. A compressão no peito decretava a orfandade absoluta.

Alguns se refugiaram no pragmatismo necessário. A irmã mais velha e eu permanecemos ao lado daquele invólucro exaurido e decomposto, embora convicta de que Maria já estava bem longe dali, a percorrer distâncias, como era de seu agrado.

Nos meses seguintes à sua partida, me visitava em sonho com a regularidade que aparecia no meu apartamento, animadinha e sem aviso. 

Todavia, numa madrugada próxima do primeiro ano de saudades, comunicou resoluta: tô indo embora, chega dessa lamúria. Vou me casar e me mudar para longe. Mas como? Assim? Quis me indignar, entretanto Maria nunca fora dada a dramas, nada mais a cara dela a liberdade de ir e vir ao humor do vento. Assim! e me deu as costas, nem sequer contou o nome do felizardo. 

O novo marido deve demandar muitos cuidados da esposa. São raros e preciosos os reencontros com mamãe hoje em dia. Gostaria de conhecer o eleito (ou haveria renovado os votos com o pai dos filhos?). Poderiam passar temporadas oníricas comigo. Deixo a porta aberta, quem sabe... 

Ciúmes à parte, mamãe merecia mesmo namorar um bocadinho, ainda que no além. Viuvez é cinza ou bege, cores que nunca lhe caíram bem. 

Cá embaixo, Maria foi ave do paraíso. No céu, é natural que conservasse a zombeteira e multicolor alegria.


Comentários

  1. Lindo demais! Dona Maria deve estar exultante por aí, solar eternamente.

    ResponderExcluir
  2. Maria! Quantas saudades... Você descreveu tão bem que visualizei vocês no quarto, com ela se esvaindo...

    Ambrosina Militão

    ResponderExcluir
  3. Lu, emocionante seu texto! Deve ter sido difícil escolher as palavras.

    Clarice Veras

    ResponderExcluir
  4. Ai, querida que doce e forte crônica, tão pungente que me transportei para o quarto que você descreve os momentos finais dela aqui, nesse passatempo chamado Terra. Isto aqui não é o tudo. Sei disso porque o nosso espírito almeja por mais!

    Karla Melo

    ResponderExcluir
  5. A morte (e o depois dela) é um dos temas mais caros da literatura, e claro, como leitor, tenho imenso interesse. Não é de hoje que me emociono com partidas (e em novelas como Ivan Ilitch). está uma crônica irretocável, com delicadeza de pena de ganso...

    André Ricardo Aguiar

    ResponderExcluir
  6. Ler essa sensível crônica e relembrar o calvário e a morte de nossa mãe, para mim foi terrível...
    Estou em prantos...
    Mas já me ergo porque mamãe não merece dor nem tristeza, ela que sempre foi energia incansável, resplendor...
    Que esteja feliz e em paz porque merece muito...
    Arreh!
    Isso me pegou de jeito, que nem injeção na veia...
    Ao lado de nosso pai, outro que merece ser feliz...
    Já estou bem, mas foi tão forte qto no dia.
    Doeu todo o meu corpo...
    Mas a gente, ao final, se fortalece e fica cada vez mas convicta de que ser feliz e aproveitar a vida, fazendo o que se gosta, é o único caminho...
    O que vale a pena...

    Marilena Holanda

    ResponderExcluir
  7. Lembrei de qdo Dado nasceu, que a minha e meu pai chegavam pra ver o 1° neto assim como vc escreveu sobre sua mãe: “animadinha e sem aviso”! Amei!

    Elisabeth Ratz

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos