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Mostrando postagens de outubro, 2019

Devocional

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“Eu vi o anjo no mármore e esculpi até que o libertei". (Michelangelo) O pé da bailarina é a escultura de mármore que se move, talhada pelo dom de um escultor titereiro. Ele projeta o pé diáfano, fluido, elástico e tenso. A dança incrustada em cada nervo, em cada músculo. O corpo da bailarina é apenas o pretexto para criar-lhe os pés de pluma em movimento. Lívido, o peito do pé da bailarina se curva numa parábola sobre beleza e infortúnios. Dedos que tocam o chão e se fundem num enlevo para alçar as nuvens do onírico. Tendões rijos e atléticos são postos à prova da leveza e da perícia.  A região plantar se esgarça pela força da impulsão e o pé da bailarina voa além da cabeça, se lança até a lua ou rodopia, em parafuso de cristal, buscando o centro da terra. O pé da bailarina não reconhece fronteiras e limites. Despido, revela a dor de sustentar a perfeição. O volátil pé de mármore da bailarina não está eternizado no museu. Dia após di

Dia Bombril

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Domingo é dos cães a levar seus humanos para passear. Das velhinhas arrumadas e perfumadas que deixam um rastro de flores a caminho da missa. E do avô que empurra, orgulhoso, o carrinho de sua descendência pelas calçadas. Domingo é dia de olhar com mais atenção o céu de chita dessa época do ano. Carece não perder a disputa dos flamboyants: qual deles é o mais incandescente? Domingo, pede o domínio do espaço para andar de mãos dadas e repor os níveis de vitamina D.  Pedalar, depois deitar sobre a grama à sombra e observar os galhos com seus desenhos irregulares. Abstrações.  Quem sabe fotografar na língua do P: pássaros, peixes e pessoas.  Domingo pode ser de bazar e de brechó. Um sorvete no fim da tarde - na casquinha - é de bom tom. O dia exige vestido, short e chinelo. Ou atravessar as horas na negação do pijama. Pode de ser de terminar aquele livro deitado numa rede ou, em rede, jogar videogame com uma galera em Kathmandu. Domingo é co

Faro(lete)

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Inspirada (e expirada) em Eva Furnari, escritora de tantas doidices maravilhosas. Há 38 anos ele suporta a cangalha. Por isso não era de se estranhar que perdesse a noção de si mesmo, sem o peso do jugo daquele apetrecho que apenas cambiava de cor, de grau ou de forma, mas mantinha o domínio.   Contudo, bastou um momento de deslize do parasita para, de repente, se perceber digno. Uma montanha escarpada, sólida, bem desenhada pela combinação de genes. A crista alongada, despida de relevos perceptíveis. Inexistentes depressões e fraturas.  Alpinistas morreriam para escalar aquela face, um deles, inclusive, ousou afirmar que seria perfeito. Assim se sentiu ao se tatear desprovido do indefectível adereço opressor.  Liberto, não somente durante o sono, mas ainda lúcido, permitiu-se a alegre solidão de ser longilíneo e delicado. Às vezes, úmido pelas gotas de orvalho que apareciam de uma hora para a outra.  Estável e simétrico, sem dúvida. Seus túneis esculpido

Calor Latente

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“Escalo o flanco de um vulcão entalhado no gelo,  calor extraído do poço de devoção que é o coração de uma mulher”. (Patti Smith) Sol de canetinha amarelo-ouro. Três da tarde. A mulher sai do útero úmido e morno da massagem ayuvédica para o mundo cáustico de um dia rascante. Olha para os lados, indecisa sobre o que fazer. Ainda tem uma réstia de horas para fingir que não tem filhos, não tem casa e não tem obrigações matrimoniais. A amiga mora ali perto, poderia lhe fazer uma visita-surpresa, porém recorda que não sabe o novo endereço da amiga. Manda uma mensagem e aguarda resposta, lá se foi o inesperado. Tenta se abrigar da onipotência daquele sol de primavera. Acha bonito as mulheres a desfilar com sombrinhas para se proteger dos raios ultravioletas. E se conseguisse se lembrar de fazer o mesmo…  Perdida nesse condicional, caminha a esmo até esbarrar numa árvore que oferta cachos de flores tão amarelas quanto aquele específico sol daquela tarde totalmen

Na lona

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Por gentileza, críticas destrutivas só no privado. Entretanto, ontem perdi a paciência e o nonsense: chamei um habitante da Bolsonaroland de pateta por assumir que foi um dos milhares a repassar fake news por grupos de zap. E não foi sequer na minha timeline! Verdadeira falta de educação básica (mas se é eleitor do Boçal, não deve perceber essas sutilezas). Certeza que foi o climatério, esse bicho-glutão. Não sofri com TPM na juventude para amargar com tensão pré-menopausa na maturidade. Os fogachos haviam desaparecido, porém retornaram. A tal temperatura de suflê no rosto, no peito. Perfeita para florescer as rosáceas, que tem nome bonito só que não são. As bochechas pegam fogo e pipocam em simulacros de espinhas. Ah, a minha antiga pele de pêssego… Partiu sem dizer adeus.  Fadiga e insônia, dupla deprê, não vou contabilizar. Rolam também lágrimas, uma sentimentalidade banal por qualquer coisa. Bem redundante de tão besta. Hoje já chorei por causa de uma propa

Sirenas

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..." ele pôde dar-se o gosto de ver os incrédulos contemplando, com a boca aberta, o maior transatlântico deste mundo e do outro, encalhado diante da igreja, mais branco que tudo, vinte vezes mais alto que a torre, e mais ou menos noventa e sete vezes maior que o povoado, com o nome gravado em letras de ferro, halalcsillag , e ainda gotejando pelos lados as águas antigas e lânguidas dos mares da morte". (García Márquez) Assombrada pelo Titanic há alguns dias, desde que li o conto “A última viagem do navio fantasma”, de Gabriel García Márquez.  Me dei conta de que os naufrágios me atemorizam. Com a leitura, fui transportada de volta ao Porto de Santo Antônio, em Fernando de Noronha, onde, no ano passado e pela primeira vez, mergulhei para conhecer os restos mortais de uma embarcação.  O Maria Stathatos aportou na maior ilha do arquipélago em junho de 1937 (ano de nascimento de outra Maria, minha mãe), quando foi consumido pelas chamas de causa