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Mostrando postagens de maio, 2018

Repouso no pouso

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A luz oblíqua de maio, sol frio, tons acinzentados nas nuvens. O outono está sendo gentil e amoroso comigo. Me leva de volta ao apartamento da 18 Harmon street. Suas fartas janelas trazendo a claridade diáfana dos dias acima do trópico de câncer.  Sinto saudades daqueles silêncios, daquela introspecção forçada, muitas das vezes, mas salutar de alguma maneira. Em algum ponto, mudei. Sou mais plena de mim. Foram semanas intermináveis de Frida, eu e a transparência das manhãs.  Hoje sou mais solitária do que sempre fui, todavia, mais serena. Gosto de estar comigo mesma, ruminando futuras narrativas, tirando fotos, vendo séries em série, pedaços de filmes. Começo a me visualizar como uma ermitã soft, equilibrando recolhimento e festas familiares. A varanda na qual me sentava para sentir frio faz parte desta aprendizagem. No verão, só era possível estar ali à noite. Mas os EUA são cancerianos de nascimento. Apreciam a tradição e o conforto do lar nos longos meses de

Alegria em combustão

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“O melhor do Brasil é o brasileiro”. Tenho sérias ressalvas em relação à afirmativa. Acredito que a premissa carece de autocrítica. Aliás, o brasileiro, em geral, tem escassez de visão de mundo e sempre se teve em alta conta, como se realmente fôssemos relevantes para o planeta. Não, não somos. Talvez a Amazônia seja. O Brasil também não é o país mais bonito do globo. Tem suas belezas incríveis, mas não é para tanto. Aliás, nem sei qual é o país mais bonito da galáxia, mas, com certeza, não é o Brasil. Eis outra falácia, outra mania de grandeza tupiniquim. Ser gigante em território nos deixou inflados e cegos para o relativismo da vida. Mas não sejamos azedos num domingo pela manhã, apesar de imersos em mais uma crise absurda na nação sem noção. Faz um friozinho de outono-inverno supimpa lá fora e ontem, num lance de sorte e jogo rápido, consegui abastecer meu carro sem traumas. Já havia decidido relevar a greve dos caminhoneiros e deixar as filas para seg

Patronímicos

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"Conversa de velho é cheia de parênteses e esses parênteses são cheios de parentes...” (Mario Quintana) Anos atrás, sei lá, uns vinte e oito, Teresa (nome lindo, que também batiza uma das minhas dezenas de primas, afilhada de minha mãe), a filha de Webster (nome maluco, na verdade sobrenome que batiza uma rede bancária nos EUA e o famoso dicionário), ainda era uma menina de colo. Chegávamos ao pilotis do prédio quadrado da 107 norte. Ali, uma bela menininha de seus dois, três anos, corre em minha direção e me agarra as pernas. É loira e é down.  Olho para ela, que já olhava para mim. Estava longe de ser mãe, mas adorável era aquela troca de olhares, abruptamente desconcentrada pelo chamado: - Venha aqui, Bibiana! Ela tinha graça e a mesma graça (antiga e maravilhosa) do irmão mais velho de meu pai! Bibiano: o único que realmente experimentou a velhice, morrendo depois dos oitenta. Por isso, um dos poucos que cheguei a conhecer na minha juventude.  Meu pai t

Pintou um clima

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para Cynthia, que me pediu um texto sobre o tema (...)"Cale a boca E não cale na boca Notícia ruim"  Não pretendia falar sobre ela até a década de 50. A minha década de 50. Para alguém que queria viver a década de 30 em dobro, o 5.0 num corpinho de 1.0 já tá bem ali. Fui surpreendida me chateando com a velocidade do tempo. Alguém anotou a placa do modelo que me atropelou?  Nunca pensei que iria me importar com o tal processo de envelhecimento. Mas a história que a gente projeta quase sempre não é a história que a gente sente. E cá estou a me lamentar pelo início do climatério sem aviso prévio, sem autorização. Apenas chegou, embolado com as desgastantes emoções dos últimos dois anos.  Mudar de casa, de país e de cultura cobrou seu preço. Pode não haver base científica alguma no que vou dizer: porém acredito que a pré-menopausa está sendo uma consequência do estresse envolvido nessa aventura incrível, todavia, insana em sua demanda

Random Access Mother (RAM)

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O vento. O rio. A asa. A estrada. O joelho. O riso.  Com isso poderias compor 999 poemas... Mas basta compor um filho. (Mario Quintana)   Se eu disser que tenho saudades desta fase, estaria mentindo. Mas gostaria, sim, de ter retido na memória ao menos o quíntuplo de instantes significativos dos rebentos na primeira infância. Há coisas sobre as quais não tenho a menor ideia de como se deram. Largar as fraldas, por exemplo. Foi fácil para um, difícil para o outro? Não sei. Não guardo nem um átimo desse processo. O primeiro dente do Tomás, quando caiu? Do Rômulo? Passou batido.  Meus filhos nasceram e deram seus primeiros passos no mundo à sombra da doença terminal de minha mãe. Sincronia injusta da vida. Era dar atenção completa a ela ou completa a eles? Acho que encontrei um certo equilíbrio na insanidade daqueles tempos, mas não sem perder muitos neurônios e lembranças.  Não recordo qual foi a primeira palavra que os dois falaram, por exemplo. E nem e

Houaiss na feira

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Lá vem o indefectível Dia das Mães. Chegou zunindo nesse ano. Ontem, a feirinha descolada fazia o apelo irresistível: quem ousa não comprar um presentinho que seja para as mortais mais endeusadas do planeta?  Tava ali, curtindo as novidades (tanta gente produzindo mil ideias legais), quando me deparo com uma banquinha chamada Gaforina. Que espanto! Acho que fazia ao menos uns 20 anos que não lia a palavra, que não ouvia sua pronúncia... - Gaforina!!! Não acredito!!! Agora me lembrei muito da minha mãe!! - Você sabe o que é gaforina??? Ninguém sabe. Todo mundo me pergunta... - Claro que sei o que significa gaforina. Minha mãe sempre me dizia: Você vai sair com essa gaforina desse jeito? - Minha avó é quem me dizia isso sempre! KKK! Você foi a primeira pessoa que passou por aqui que sabe o que é gaforina. Sua mãe era de Minas? - Goiás, o que é quase a mesma coisa... O rapaz que comprava ao lado continuou confuso, mas logo explicamos: - Gaforina é

Mundéu

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Ana Brisa e Maria Neblina eram gêmeas siamesas. Mentira, mas pareciam. Um só corpo e coração duplicado em exatidão.  Ninguém sabia quando a brisa de uma dissipava a neblina da outra, além delas mesmas. Os pais foram, desde o nascimento, as cobaias preferidas das filhas, mestras nas artes da dissimulação e do disfarce. Quando tinham certeza de que era de Maria a travessura, na verdade era de Ana. Quando apostavam que Ana comera o bolo das visitas, de fato fora obra de Maria.  Brisa e Neblina podiam até misturar seus braços, pernas, umbigos e madeixas, mas quanto aos desejos, cada uma maquinava à sua maneira. A primeira era leve, suave, diáfana de pensamentos encaracolados e reticentes. A outra, enevoada e densa. Trazia em si um véu intransponível, ainda que transparente. Por isso, de Maria só brotavam poemas concretos como pilastras. De Brisa, brincadeiras inventadas. Neblina era o pilar de Brisa. Brisa era o sonho de Neblina.  Mas os pais não entendiam bulhufas

Um bode à janela

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Tô totalmente no moody pinturas de Andrew Wyeth hoje. Moody... Taí uma palavra que transmite à perfeição seu significado. A letra O dobrada, dando clareza ao espírito arrastado, denso. Por isso ranzinza, rabugento ou temperamental não são correlatos interessantes. Moody é moody. Assim como cool é cool e saudade é saudade. Palavras definitivas, infinitivas.  Moody é uma espécie de “radiação do corpo negro”. Desculpe-me os físicos, mas as expressões que vocês alcunham são magníficas para ser utilizadas fora do contexto científico (vide o uso da quântica em vão por canastrões holísticos de toda natureza).  As janelas de Andrew; a desolação e frieza de Andrew. Um sol esmaecido. Vidas congeladas num fim de mundo qualquer.  Precisei ler textos de autoajuda hoje. Confesso que recorri à importância da coragem, da aprendizagem contínua, da poesia do cotidiano. Ouvi uns podcasts chatos (como é que esse formato faz sucesso, gente?) sobre o caminho de Santiago de C