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Mostrando postagens de junho, 2020

Léu

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As coisas andam sem graça e por isso só podem ser nomeadas abstratamente. Assim estão porque a vida virou uma produção trash, filme Z. Entretanto, a recíproca não se encontra. De que vale a ficção sem a realidade para lhe dar respaldo? Para ser o contraponto que lhe equilibra? Às vezes, por segundos, minutos, quiçá horas, é possível se esquecer de que estamos presos nessa matrix. O aroma da dama da noite atravessa a máscara e se experimenta a liberdade palpável de ir e de vir, sem barreiras. A criança que tagarela suas primeiras frases desconexas e caminha sobre o piso tátil para cegos. Ela não compreende a linha limitadora, apenas se diverte. Esse é o mundo que se lhe apresenta e ela o absorve com a voracidade da mente em expansão. Tela para pintar, página por escrever, passos a avançar. As árvores centenárias sobreviveram ao fogo, aos parasitas, à seca, ao machado, à motoserra por inúmeros ciclos. Guardam, nas raízes e nos troncos, camadas de cicatrizes e d

Vórtices

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"Agora abria as janelas e portas, escancarando-as para que o ar penetrasse nos aposentos e tirasse de lá minhas ansiedades mofadas e todas as moléstias possíveis".  (Olga Tokarczuk, em Sobre os Ossos dos Mortos)  Meço a intensidade do frio pelos tímpanos.  É quando percebo que eles existem, estão dentro de mim, cravados num lugar escuro, úmido e misterioso.  A razão de meus ouvidos médios serem sensíveis às baixas temperaturas, nunca soube. Desde criança, quando ganhei a primeira bicicleta e imprimia velocidade pelas ruas da quadra, descobri que o vento gelado ia de encontro ao orifício da orelha como uma nota aguda do violino a tocar no interior do cérebro. Enquanto os tímpanos hibernam, ainda não se inaugurou a friagem invernal. É um indicativo. Nem sequer os fones são capazes de impedir a conexão do sopro gélido com as membranas da janela oval. Pensar que não apenas os olhos estão abertos para captar as nuances da vida. Bonita essa ima

Rainha do lar

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Dizem que ter cachorro é igual a ter filho. Mentira que só quem não tem filho, mas tem cachorro corrobora. Porque amar um cachorro é muito mais fácil do que amar um filho. O cão não lhe dá motivos para chorar, a não ser quando morre. Talvez lhe dê alguns aborrecimentos bestas como fazer xixi no tapete só para mostrar que está contrariado contigo, roer o pé dos móveis e engolir chinelos, quando filhotes. Filhos, ao contrário, te tiram do sério a vida toda por N motivos, dos mais relevantes ao mais idiotas. Cachorros são feitos para não te levar a sério nem um dia sequer e, por isso, são leves e afáveis. Cachorros não cobram e não perguntam, apesar de também fazerem caras de carência e de incompreensão. Entretanto, não fecham o tempo se você não os corresponderem da maneira como esperam ser. Eles criam menos expectativas. Os filhos, mais. Cães te fazem companhia pelo simples fato de que nasceram para ser parceiros. Ficam ao seu lado na cozinha, esperando alguma l

Poente

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A hora do Ângelus coincide com o movimento mais intenso dos helicópteros.  Você para, olha e escuta.  Não trazem reminiscências como os trens, pelo contrário: ruído que afasta a serenidade.  Mas os anjos retornam assim que eles se vão.

Transitoriedades

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O sol escorrega pelas bordas do concreto feito calda caramelizada. Enche de ternura os olhos, aconchega como bolo de mãe.  Enquanto isso, nuvens-garças debandam pelo céu azul esmaecido. Levam com elas a tarde de outono.  É bom usar echarpe e mirar os galhos desnudos,  na tentativa de esperta o firmamento.  Porque eles não desistem. Eles não se abatem com as incertezas do momento espantoso.  Os homens se adaptam a quase todas as coisas: nômades da Mongólia, tuaregues do Saara, inuits do Pólo-Norte.  Quase gosto dessa vida suspensa. Há menos ruído externo e mais filosofia.  Entretanto, existe fome. Faltam abraços e sorrisos sem disfarces. Ausências as quais o espírito não se amalgama.