Velhinha de primeiro mundo



Os pés cada dia se parecem mais com os de mamãe. A pele se enruga e queda-se marcada em sulcos laterais. Pequenas manchas senis escalam canelas afora. Dedos calosos.

Na região plantar, esporões sob controle. Ela os teria? Acho que não. Era de alma e modos casuais. Não usava salto alto. Porém, subia nas tamancas se achasse necessário. 

As pintinhas se multiplicam em velocidade exponencial pela barriga, antebraços. Os cabelos brancos eclodem do ponto mais quente da cabeça, direto do centro do crânio. Daí se tira a conclusão de que o estresse contribui para o envelhecimento precoce?

Precoce nada, são quase cinco décadas. Não se atravessa a metade de um século sem transformações físicas e sociais. A gente é que não quer dar o braço a torcer para o tempo. Fica naquela ladainha de melhor idade, igual a vinho, experiência e sabedoria. 

Excesso de tempo dá osteopenia, isso sim. Envelhecer é porrada. Menopausa. Ora, ora, veja bem, pausa só fica bonita na música e na fotografia!

Mas tem o outro lado também. Toda a existência é dual. Encarquilhar significa que você está vivo, né? 

A gente sonha que a mãe da gente morra velhinha. Concomitantemente, não queremos ficar idosas igual a ela. Haja incoerência. 

Pedimos para viver muitos anos e não morrer antes da hora naquelas viagens de avião infernais. A ideia é ver os filhos crescerem, casarem, procriarem. Os sonhos básicos das mães não variam muito, não. Sem falar naquela vontade de se intrometer na lista de convidados para o casório, é claro.

Sorte mamãe haver participado do meu, mas não acompanhou as estripulias dos filhos da caçula. Em contrapartida, minha sogra está virando um carvalho lindo. Os meninos terão memórias felizes de se jogarem no sofá da casa de vó. De espalharem legos pelo chão da sala: as exatas peças que sobrevivem intactas às três gerações de netos Mello.

Taí, tomara que eu envelheça igual a uma pecinha de montar de qualidade dinamarquesa. Cores vivas, encaixe perfeito, mil e uma formas e utilidades, flexível aos desejos e expectativas dos outros, aberta ao toque, ao escrutínio, ao desmonte, à chuva e ao sol e até ao esquecimento, dentro de uma caixa num fundo de armário da casa-asilo, ou melhor, do lar da avó que gostaria de ser.


Comentários

  1. No mínimo isso, flexíveis, coloridas e de encaixe perfeito 🥰 Adorei

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  2. Sempre maravilhosos textos Lu,, 🤗💕”não quero morrer, pois quero ver como é que deve ser envelhecer”...diz a música do Arnaldo Antunes...eu já sei como é 🙄😂😂

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  3. Que lindo!!! Eu, nos altos dos meu 53, me vi ali em muitos pontinho ;) vc enxerga o fundo das almas, Lu!

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  4. Envelhecer é uma arte, sem dúvida.
    Difícil e só mesmo tempo muito interessante!
    Apesar das perdas (das pessoas, das nossas capacidades, etc) acho que os ganhos são maiores.
    Sabedoria só vem com cabelos brancos!
    Mas os sentimentos ambíguos sempre existirão. Adoro ver meu filho crescer e se tornar independente, mesmo percebendo que ele escapa das minhas mãos... Viver muito tempo traz muita dualidade.
    Acho que o segredo é a mutação constante, a famosa metamorfose ambulante.

    Rodrigo Holanda

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  5. Sempre maravilhosas descrições dos dilemas internos da vida real!!!
    Que dom MARAVILHOSO!!! Adorei demais!

    Da sua fã número 1,

    Anna Gabis

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  6. Amei a comparação com lego!

    Renata Assumpção

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  7. Tomara que você fique uma velhinha porreta.

    Valdeir Jr.

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  8. Hj mesmo estava ali no espelho trocando ideias rsrsrs... Quase 5 décadas...

    Maria de Fátima Venceslau

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  9. Eu não quero ser um lego, não! KKKK!

    Karla Liparizzi

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  10. Lindo, me emocionou.

    Adriana Oliveira

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  11. Lapidar.

    Ana Cristina de Aguiar

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  12. Ai, Luciana, você é maravilhosa. Isto agora é meu: "Taí, tomara que eu envelheça igual a uma pecinha de montar de qualidade dinamarquesa. Cores vivas, encaixe perfeito, mil e uma formas e utilidades, flexível aos desejos ~~expectativas dos outros~ , aberta ao toque, ao escrutínio, ao desmonte, à chuva e ao sol"
    Fiz minha alteração. Nada de ficar a mercê dos desejos dos outros. Ou coincide com o meu, ou não há acordo.

    Karla Melo

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  13. Terna e divertida porrada! Espera mais 15 anos... E vivas para os bálsamos chamados netos que nos veem como Bruxas do Bem e brincam conosco.

    Ângela Sollberger

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