Farofa com Cortázar




O marido, sem nenhuma pretensão de se tornar escritor, lera os grandes clássicos, muitos deles no original. Mas Isa tinha preguiça dessa erudição. Apetecia-lhe a imersão nas narrativas que lhe dessem ganas, sem obrigação de reverenciar os cânones mundiais. Relia, inclusive e com certa culpa pela falta de tempo costumeira, as obras amadas anos atrás. 

Isa era capaz de ler em inglês e espanhol, entretanto, sua alma onírica se sentia mais confortável em português. As traduções podiam às vezes derrapar, contudo Isa acreditava que a língua materna é exatamente o que o seu nome afirma: útero, aconchego, identidade.

Percebera-se, no entanto, num dilema: estava sem novos livros de cabeceira. Havia saído de experiências densas com Milan Kundera e Patti Smith. Adoraria se embrenhar em histórias assombradas ou num rodopiante romance policial. Algo com cara de férias, enfim.

Recorreu às estantes para se certificar de que não existiria nelas algum tesouro esquecido. Encontrou Laços de Família, da Clarice. Isa tomou um susto: ué, não me lembro de ter comprado esse. E de fato não comprara. Logo na folha de rosto, o nome da amiga estampado. Corou, envergonhada de se pegar em flagrante delito. 

Isa se detestou imediatamente. Caramba, fiz com ela o que não gosto que façam comigo: me apossei do empréstimo. Ainda mais Clarice, a escritora preferida da amiga. Se repreendeu e prometeu, em silêncio, lê-lo com cuidado, não grifar as frases e os parágrafos preferidos (sempre um risco), e devolver a pérola assim que fosse possível, dadas as circunstâncias: a boa amiga se mudara para o interior da Bahia e os encontros reais se tornaram virtuais antes mesmo de inaugurada a era pandêmica.

Todavia, Clarice não era bem a leitura a qual procurava justo agora pós-Patti: duas intensidades similares. Passou os olhos em revista pelas lombadas: inúmeros títulos instigantes desprezados por estarem no idioma-natal. Resolveu dar uma chance para Bestiario, do Julio Cortázar. 

Isa precisava confessar que nunca lera Cortázar em estado bruto, mas amava a praça batizada em homenagem a ele, no bairro Palermo SoHo da saudosa Buenos Aires.

Quantas lacunas na minha formação literária, refletiu. Fazer o quê se não se interessava por Borges,  Woolf, Calvino ou Proust? Ao menos havia Tolstói e Guimarães Rosa. Nem tudo estava perdido no sonho da escrita. 

O pensamento saltou para o café Rayuela, tão bacaninha, aberto e fechado na velocidade entre a vida e a morte de uma crisálida. Que é um nome lindo para um livro isso é, Julio. 

Acomodou as costas nos travesseiros, puxou o lençol até o umbigo e abriu Bestiario. Já no primeiro conto, o bofetão: a casa e ela foram tomadas pelo incômodo bem-vindo dos textos primorosos. Isa recordou as melhores histórias sombrias da caríssima Lygia. Convenhamos, deveria ser menos preguiçosa. Talvez Julio seja um cara legal, afinal.

Na manhã seguinte, pegou o exemplar e jogou dentro da mala: bora pra praia, hermano!

 


Comentários

  1. Adoro Cortázar. Boa leitura e boas férias!

    Kédyma Almeida e Silva

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  2. Cortázar, a melhor companhia...
    Belíssimo conto, parabéns.

    André Luiz Alvez

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  3. Andei me identificando com Isa. Talvez eu esteja precisando ampliar meus horizontes literários! Não sou muito de variar, mas em compensação os autores que li, li quase todas as suas obras. Beijos amiga e obrigada por esta leitura intensa e cheia de anseios.

    Rogelma Ferreira

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