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Mostrando postagens de agosto, 2020

Desnorteada

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Reverberam objetos. Tensões criadoras.  Agosto se vai sem parecer o infinito desgosto ressequido. Nada é mais o que poderia ter sido. Fundos de tela são a face do desejo irrealizável.  Todos em transmutação de limites e de fronteiras: até onde ir, em quem não tocar, para quem dar ouvidos, sobre o quê se lixar. Tudo é PabloMilanés&ChicoBuarque + Secos&Molhados. Intersecção entre como se fosse a primavera e primavera entre os dentes: leve e pesado; apaixonado e morto. Conjuntos unitários em fagocitose pululam no ambiente coletivo de realidade irracional. A compreensão de “A Viagem de Chiriro”, enfim.

Pontaria

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Escrever é mais ou menos como aquele provérbio "atirei no que vi e acertei o que não vi". Os textos são paridos numa perspectiva, porém, repentinamente, eles próprios decidem mudar de rota e acaba que o autor também não tem certeza da precisão de seu tiro. Aponta-se para alguns e... Nem sempre a mira é intencional, tem objetivo. Quem escreve o faz porque viaja e volta sempre ao texto porque o ama. Consequentemente, o texto vai para o mundo e pode atingir ou não atingir o leitor. E de formas diversas também. A leitura pode pegar só de raspão e logo passa. Atingir braço ou perna: dói, comicha, abre uma fenda, atravessa, mas sem grandes consequências. E pode ser fatal, acertando órgãos vitais: faz rir, chorar, refletir, meditar, revoltar, transformar, agradecer, reler, multiplicar exponencialmente. Eis a pontaria que todo escritor almeja. Não é fácil não. Aliás, complicadíssimo. Exige exímia perícia e instinto de caçador. Porque atirar pra matar com as palavras é uma das poucas

Prece

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Se Deus está em tudo, nas coisas e causas naturais; nas obras dos homens; no silêncio da manhã cujo sol se espreguiça lentamente, esticando os braços para fora do cobertor de nuvens... Se Deus é tudo ao redor, para que se encerrar entre quatro paredes a ouvir berros de alguém que se autoproclama mais perto dele? Juro pelo sagrado feminino que estava a me fazer essas reflexões quando a lista aleatória do Spotify inicia "Se eu quiser falar com Deus", na voz do Gil. Arrepio do calcanhar à nuca enquanto uma rajada de vento me toma de jeito. Se existe Deus, ele não é nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada, nada do que esperava mesmo encontrar.

Amarelou

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O ipê amarelo é o mais exibido dentre os irmãos. Ele floresce na cor do astro-rei.  Domina a cena e posa todo flamejante em vários endereços da cidade. Clama por admiração e por selfies.  De longe, chama atenção e rivaliza com o pôr-do-sol vermelho de agosto. É um outdoor natural. Impossível não vê-lo, não identificar sua mensagem de realeza e de perseverança. O toque de Midas do ipê amarelo embeleza a feiura dos prédios que têm a sorte de sua vizinhança. É, com sombra e sem dúvida, a maior recompensa ao olhar calango-candango na áspera sequidão invernal.

Objeto e pé

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Texturas Tessituras  Teto de palmeira cacho da Jussara Açaí Buriti Licuri Jerivá Técnica indígena Trançado Guariroba Babaçu Butiá Coqueiros da Ásia: leque da China, mas se naturalizou faz tempo.

Correio Elegante

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Despir o anonimato das cenas cotidianas. Trazer à tona. Expor a própria rotina sob um olhar ácido ou bem-humorado. Delatar imagens ordinárias com pinceladas poéticas. A crônica conta a história mundana, óbvia, trivial. Não utiliza artifícios estilísticos, complexidades de enredo, clímax e anticlímax. Seu trunfo está em ser empática com as agruras e as delicadezas experimentadas por todos, porém reverberadas por quem tem olhar deferente para a fatalidade das horas. Nesse ponto, esbarra na poesia e na fotografia. Instantes pueris, às vezes dramáticos, captados em palavras e em imagens fadadas à inexistência. O tema da crônica tem começo, meio e fim. A situação passa, vira outra história a ser contada. “Amanhã vai ser outro dia”...  Injustamente, é um gênero considerado “fácil’, “menor”. Esquecem-se de que foram grandes cronistas como Rubem Braga, Clarice, Fernando Sabino, Drummond (olhaí intersecção com o poema) quem formaram legiões de leitores e de novas gerações de escritores. Acho qu

Entre o sabiá e a pega

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A ossatura da clavícula abre dois pontos para a cavidade do pescoço onde se esconde a tireoide. Entretanto, os dois ossinhos se divisam a olho nu. Demarcam com precisão o melhor local para o camafeu, a medalha da madona ou do santo de devoção. Há quem goste de corações e crucifixos colados à pele.  Gosto de gargantilhas, palavra engraçada - ou seria feia - que vem do castelhano: gargantilla, diminutivo de garganta. O espanhol sempre literal nem sempre é suave. Rompecabezas que o diga! Em inglês tampouco é sutil: choker, explicita a conotação de práticas sexuais arriscadas. Divago enquanto constato que apenas o meu pescoço pode ser diáfano como o da bailarina. É fino e ligeiramente comprido, ainda sem aspecto de tartaruga-marinha.  Por isso me apraz essa região do corpo. Lembra-me uma das cenas mais sensuais do cinema, aquela do O Paciente Inglês, quando ele afirma que o ponto predileto da amante a desvendar é o pequeno declínio pouco abaixo do pescoço, próximo ao peito. Kristin Scott T

Abordagem

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Gaiuta aberta areação natural. Gaivota observa o voo da genoa, guria serelepe a sacudir a saia. Krakens surgem à proa. Engastalham os braços grotescos longitudinalmente no casco: vigiam o gostoso mergulho dos garotos sem medo de mitologias.

Esfíngicos

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(...)Sábios em vão Tentarão decifrar O eco de antigas palavras Fragmentos de cartas, poemas Mentiras, retratos Vestígios de estranha civilização Não se afobe, não Que nada é pra já Amores serão sempre amáveis”... (Chico Buarque) Na infância, me imaginava arqueóloga, o sonho de conhecer as pirâmides do Egito. Cria-me muito aventureira. Era metida à exploradora. Colocava meus amigos da escola em expedições arriscadas pelos córregos da fazenda para chegar à borda das cabeceiras das cachoeiras. Por sorte, todos atravessamos a adolescência - apesar das ideias selvagens da anfitriã - sem encontros com cobras venenosas ou ossos quebrados. Não sei qual foi o ponto de ruptura com a alma impetuosa de mochileira sem eira nem beira que havia em mim. Certamente a vontade de ser mãe, que se mostrou irreversível na década dos 30. Jovem adulta, quis ser antropóloga. Percebi que gostava mais de entender o comportamento dos grupos sociais do que a ancestralidade dos objetos. Atualmente, sem ter realizad

Comparações

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A rotina na pandemia guarda muita semelhança com o dia a dia vivido nos EUA. Há o isolamento social comum aos forasteiros ainda não inseridos na dinâmica de outro país. O extenuante trabalho doméstico diário, que acaba sendo deixado para lá após algum tempo de neurose com limpeza e com ordem. Parêntesis: As mulheres americanas costumam abrir mão da carreira para criar os filhos, pois acumular trabalho interno e externo, marido e crianças é, sem dúvida, o caminho da perdição. Quando as os rebentos chegam à adolescência, elas ensaiam o retorno à vida profissional. Os aqui de casa já estão nessa faixa etária e como ainda perturbam! Adoraria ser apenas uma stayhomemommy neste momento difícil da humanidade e insuportável do Brasil. Fecha parêntesis. Assim como nos EUA, saio a resolver pequenas e diligentes questões na rua, entre elas, passear com a raposinha disfarçada de cachorra, com a roupa que estiver no corpo. Sem pudores e vaidades típicas das brasileiras, não estou nem aí se a blusa

Atonia

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Ao caminhar sozinha pelas calçadas arborizadas da Asa Sul, sinto um pouco da antiga (já soa milenar) liberdade no rosto. Ainda mais nesse inverno surreal, especialmente frio, silencioso e sombrio. Afirma o documento do hospital que nasci às 18h do dia 21 de fevereiro de 1971. Vinha ao mundo uma anjinha atribulada na hora do ângelus. De lá até hoje, honro o fim da tarde com devida vênia. Sintonia e inspiração elevadas. É o momento do dia no qual sinto mais sono também. Quiçá a vontade inconsciente de voltar ao útero; de me recolher num espaço de proteção. Gosto de me exercitar nas manhãs, entretanto o horário de trabalho me obrigou à atividade física nas bênçãos do pôr-do-sol. Venho me acostumando a contemplar os últimos lampejos de claridade enquanto ouço música e inflo a máscara. Recordo da infância um teste pulmonar que consistia em soprar uma espécie de sanfona por meio de uma mangueira. Alguém aí se lembra disso? Eu nunca ia bem. A sanfoninha se expandia

Bem-casados

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Tornaram-se vizinhos. Após anos morando na mesma cozinha, cada qual num canto, foram colocados lado a lado. Rapidamente se adaptaram à presença um do outro. Têm naturezas semelhantes: são velhos, já passaram dos vinte anos de serviços prestados. Os mais idosos dos eletrodomésticos da casa. Nunca esmoreceram. Nunca foram parar no hospital dos consertos. Ela se despediu do jarro de vidro refratário, é verdade. Substituído por um de alumínio, uma vez que o original se trincou nalguma lavagem. Ele, ao contrário, segue original de fábrica. Geminados, se complementam. Ela faz o café para acompanhar o pão de queijo ou a torrada que ele assa. Telúrica essa vizinhança acontecida ao acaso. Ambos presentes de casamento de duas pessoas basilares na vida do casal. Duas madrinhas: Flávia e Jandyra. Essa, preta, deu a cafeteira preta. Aquela, branca, ofertou o forninho que já foi alvo. Entretanto, o encardido são as rugas de uma existência bem vivida. A dupla receou ser descartada com a che