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Mostrando postagens de dezembro, 2020

Farofa com Cortázar

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O marido, sem nenhuma pretensão de se tornar escritor, lera os grandes clássicos, muitos deles no original. Mas Isa tinha preguiça dessa erudição. Apetecia-lhe a imersão nas narrativas que lhe dessem ganas, sem obrigação de reverenciar os cânones mundiais. Relia, inclusive e com certa culpa pela falta de tempo costumeira, as obras amadas anos atrás.  Isa era capaz de ler em inglês e espanhol, entretanto, sua alma onírica se sentia mais confortável em português. As traduções podiam às vezes derrapar, contudo Isa acreditava que a língua materna é exatamente o que o seu nome afirma: útero, aconchego, identidade. Percebera-se, no entanto, num dilema: estava sem novos livros de cabeceira. Havia saído de experiências densas com Milan Kundera e Patti Smith. Adoraria se embrenhar em histórias assombradas ou num rodopiante romance policial. Algo com cara de férias, enfim. Recorreu às estantes para se certificar de que não existiria nelas algum tesouro esquecido. Encontrou Laços de Família, da C

Estrelas

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Ah, os cães. Aliás, ah, os animais. No fim do dia de ontem, tão loooongo, de frustrações e de exaurimento, quem poderia imaginar que a ida à farmácia, perto das 22h, seria a recompensa, o bálsamo para a chaga do desalento. Levar um cão a tiracolo é sempre a oportunidade de encontrar leveza no mundo. Eis que nós voltando e eles vindo, um casal com um collie. Lessie em carne, osso, pelos e altivez. - É uma bonita ou um bonito? - Bonita. - E esse seu, não conheço, que raça é? - Corgi. - Corgi? - Sim, aqueles cachorrinhos da rainha Elizabeth. - Ah... As cachorras se reconheciam e Frida se portava com a indiferença inglesa blasé costumeira. - Ela é muito calma, né? - Sim, bem inglesa. Na dela. - E qual é o nome dessa belezura, perguntei afagando o focinho alongado, os pelos macios da nova gata, ops, cachorra da vizinhança. - Elizabeth Taylor! - KKKK! Rimos todos. - Eu sempre coloco nome de estrelas nos cachorros: Andie MacDowell, Meg Ryan e essa é Elizabeth Taylor. - Não poderia ter escolhi

Neurastenia

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"Não eram sonhos incompreensíveis, mas o delírio das horas vividas".  (Patti Smith) Neuroticismo em progressão é isto. Tive de me certificar de que não estava psicótica, pois quem sofre de psicose perde o contato com a realidade. A realidade ao meu redor está mais palpável do que gostaria. Padeço de hiper realidade, realidade aumentada, excesso do real. Os sons diários me enervam.  O caminhão de botijão de gás, por exemplo. Toda manhã aquele barulho de um batendo no outro, a acomodação natural na caçamba. É experimentar o Dia de Marmota sem a veia cômica de Bill Murray para aliviar. Os canos das motocicletas, cada passagem pela rua em frente mais histéricos. A vida delivery trouxe na garupa sedentarismo, obesidade e neurastenia auditiva. Sem falar nos escapamentos de carros envenenados, renascidos do inferno da década de 1970, quando éramos mais bárbaros do que hoje, se abjeto horror for possível.  Aliás, o Brasil todo retrocede a um estado de fundamentalismo neopentecostal o

LSD

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Cada dia mais andarilha. Alguns dias sem escrever bate a abstinência. Domingo tem a melancolia da queda  do império romano. Penso num pé de romā. Pé ante pé até Constantinopla.  Algumas horas ao ar livre nivela a endorfina.  Concordo: fungos são fotogênicos. Living beans: strange beings. Líquens funghis: alucinógenos.  Mofo  bolor: patógenos. Agáricos numéricos, ábacos da China, cogumelos de Paris.   A primavera  verdeja  a cor da umidade.