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Mostrando postagens de junho, 2021

Intervalos

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O avião na trajetória ascendente não difere do foguete. O risco iluminado no céu  o som de trovão  a rapidez do corisco  a poética de Ícaro. No rés do chão reles detalhes encantados. Quem olha para frente, às vezes não se dá por atraído.  Quem olha sempre para as nuvens [perde a lírica metamorfose que se dá a cada passo, no atrito dos dias.

Infindo

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"Cuidado para não cair da bicicleta. Cuidado para não esquecer o guarda-chuva"... Maria não foi destas mães protetoras. Livre, após tantos anos de cabresto patriarcal, costumava dar outro conselho: “se vire, você não é quadrada”. Também nunca fez canja de galinha para a filha adoentada. Preferia bater uma boa gemada com açúcar caramelizado e com leite de curral. Às vezes, optava pelo mastruz - farto na fazenda - com leite quente. Xô, ziquizira. Eis uma explicação para as inúmeras quedas da bicicleta, das árvores e dos cavalos; por viver esquecendo a sombrinha e por não ter notícias de fortes resfriados durante a vida. Ontem, mais uma vez, estava a guria na rua sob o céu zangado sem guarda-chuva. Eram sete quadras a vencer e a possibilidade de que a bronca celeste fosse das mais bravas e inéditas: meados de junho com outra tempestade em Brasília? Valia o risco de se molhar. Caminhei de olho nas árvores, como sempre, porém com a preocupação de que os galhos permanecessem em seu

Vespestinos

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A hora mais bonita no quarto é aquela do sol a bater na janela. Teria Renato Russo escrito a partir de similar perspectiva? O prédio onde o ícone viveu a adolescência é o mesmo; o andar, um lance de escada mais baixo. Gosto de viajar na hipótese de fã. A luz se imiscui sem pudor pelas partes íntimas da alcova, apenas nessa época do ano - outono-inverno - aquecendo as pupilas e os sentimentos. Reminiscência morna do cheiro do filhote recém-nascido, amentado peladinho, para absorver a energia saudável do sol. É sabido que os leões precisam dourar desde tenros. Assombramentos fantasmas camaradas.   A vida anda pálida, animais em debandada, pessoas mascaradas anêmicas; árvores tombadas... As redes sociais roubaram a alma do planeta em milhares de cliques, centenas de lives. To like or to dislike: eis o questionamento viralizado. Vibe espectral.

Casulo

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A tempestade furiosa cuspiu gelo. Éolo bafejava sobre as árvores aflitas, que tentaram resistir à violência dos golpes, mas algumas tiveram os braços arrancados na escuridão da noite sem lua. À porta, tremia o cachorro. Em sua maturidade rural, jamais presenciara batalha tão sangrenta. - Passe pra dentro, rápido! As janelas de tramela sacudiam à revelia. O chalé poderia, a qualquer momento, ser tragado para o mundo de Oz. No escuro aquecido do quarto, ela dormia um sono raro. Não tomou conhecimento das tormentas; nada ouviu da ventania; nada presenciou dos clarões ininterruptos no levante do céu. Sentia-se protegida, imersa em líquido amniótico. O aroma de lótus embalava o descanso da mulher - de repente, menina - deitada em posição fetal, ao lado da própria Gaia. Por mágica, tornara-se filha outra vez. E como era reconfortante o sentimento filial do cuidado. Abriu os olhos no dia claro e a figura maternal seguia em vigília. Emanava, de seu corpo flexível, luz e afeto. Abrigada no casu

Louise

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Manteve as janelas do carro abertas. Nāo se perturbou com o revoar dos cabelos, com o zunido do vento. Aumentou o som. Pôde ouvir a seleção da Tetê Espíndola que o marido jamais suportou. Tentou cantar naquele mesmo tom de pássaro. Espertamente, muniu-se de um vidrinho de própolis. A garganta não sentiria o esforço de sobrepujar-se aos ruídos vários e à falta de dom para soprano ligeiríssimo. Havia bananas e ponkans; água e chocolate, o leal companheiro em formato, embalagem e sabores novos: pistache com flor de sal. Chocolates bem feitos não costumam decepcionar. Valeu o investimento, vez que expedições sem descobertas ficam capengas, pela metade. A barra cerâmica de cacau também ficou, mas segurou a gana de chegar ao final da iguaria. Era ainda muito chão sob a própria direção. Entre Catalão e Cristalina, 183 km dos mais tediosos do Brasil. Cada 100 metros parece se repetir como uma imagem congelada: deserto verde dos dois lados da rodovia. Milho, soja e zero preservação ambiental. S

Thelma

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"Navegar é preciso, se não a rotina te cansa"… Inveja tenho dos rotineiros, dos reservados e de quem sabe matemática. Então eu, sempre no papel de navegadora, assumi o comando da embarcação. Tudo em nome de uma viagem. Era encarar ou ficar dez dias de férias presa no pandemônio pandêmico, assistindo à CPI como se fosse trazer algo salutar para a vida. Aprendi a usar o freio motor; reduzir as marchas nos declives abismais da Serra do Mar. Segui sozinha, atenta, sem contemplar, vício adquirido em tantos anos no banco do passageiro. Não anotei os nomes exóticos dos rios ou das cidades. Não fotografei cada árvore incrível, cada paisagem única. Era dirigir ou desistir. Preferi arriscar e tive menos medo do que imaginei. As estradas foram gentis com a marinheira solitária: poucos caminhões, manhã de sol, bem conservadas e bem sinalizadas. Uma salva de palmas para o GPS também, é claro. Ah, se os portugueses conhecessem, de antemão, a exata rota para as Índias... Um pouco antes de m