Promoção de Peão*




Tá rolando uma série da Netflix no radar apreciativo dos assinantes brasileiros: “O Gambito da Rainha”. A trama conta a história de uma menina de nove anos, orfã, que descobre no xadrez o refúgio para o mundo hostil ao seu redor. Ainda não vi nenhum episódio da temporada, porém já incentivei meus teens a assistir, pois eles curtem jogos de raciocínio. 

Falar de xadrez me faz recordar que, aos nove anos, também órfã de pai e dona de mecanismos de defesa afiados, aprendi a dar o xeque-mate numa escola semi-interna na qual estudei. Ah, as conexões “tectônicas”, diria o primo-irmão, tirando sarro da minha mania de procurar a mão do inefável em tudo.

Durante um único ano, frequentei a alta burguesia da cidade de Brasília, solução radical de mamãe, cuja viuvez com seis filhos jovens + a temporã cada dia mais moleca, não tinha a menor condição de me dar o mínimo de atenção (percebam o ato falho do copo vazio nos potentes substantivos empregados).

Era uma escola ótima, para gente abonada. A ideia era ocupar a mente e o corpo da menina travessa, de 8h às 18h. No início, rebelei-me contra a proposta. Não pretendia deixar meus amigos do Colégio Notre Dame e as tardes de brincadeiras com a gurizada da quadra: subir em árvore e em telhado, queimada, polícia e ladrão, bicicleta, tocar a campainha e sair correndo, carniça, pique-esconde. 

Mamãe, assustada com a possibilidade de a vida de rua me transformar numa pivete fora da lei, fez contas e sacrifícios financeiros consideráveis para me matricular no Inei, escola pioneira em oferecer a modalidade de semi-internato na capital federal.

O choque da menina classe média baixa com os filhinhos de papai foi, como vocês podem imaginar, chocante. Mas não esmoreci não. Talvez os embates de rua e toda sorte de garotos e garotas mais novos e mais velhos, pretos, brancos, sararás, malas ou não, mais pobres ou não com os quais convivi, tenham me dado a segurança necessária para não ser trucidada por legítimos descendentes de empresários, políticos e altos funcionários da Administração Pública.

Aos poucos, me afeiçoei àquela atmosfera aristocrática e cultural: ali, comecei as aulas de balé, de inglês e de xadrez. Lá também havia disciplina: era responsável por armário próprio, com chave e cadeado, onde guardava sonhos de virar a primeira bailarina do Teatro Nacional e os materiais escolares.

Uma das professoras da terceira série, tia Grace, me “adotou”. Os carentes se entregam em gestos e palavras, atos e omissões. Ela não tinha filhos e gostava dos títulos das minhas redações. Almocei no apartamento dela algumas vezes. Grace (o nome era a tradução de sua personalidade) morava perto da escola e pedia autorização para me levar consigo. Ninguém pensava sobre pedofilia nesses tempos. Nem ela e nem o marido eram psicopatas, ufa!

Por outro lado, a professora de Artes não simpatizava com a aluna desafiante. Me considerava muito “abusada”. Tanto que me deu um presente sem igual: me chamou para encarnar o papel mais marcante da minha vida, o de Emília, a boneca-gente de Lobato, numa celebração do Dia do Livro. “Acho que você combina muito bem com ela”, disse ao me convocar à sala da coordenação pedagógica (eu me pelando de medo de levar uma suspensão e mamãe me dar uma surra).

Dona Maria, coitada, quase foi à falência em 1980. Entretanto, a filha caçula recebeu educação de indiscutível qualidade (até minizoo havia na escola). Fiquei triste por haver sido obrigada a abandonar o estilo de princesa intelectual no ano seguinte. Voltei para o Notre Dame, embora credite a esse único período de tutoria diferenciada, a fleuma de artista tatuada na alma. Alguns desafetos dirão pedantismo ou arrogância, compreendo.

Quanto ao xadrez, não lembro patavinas. Lógica e discrição nunca foram meus nortes. 

*O peão é a peça “menos valiosa” do jogo. Mas quando você consegue que seu peão alcance a última casa do seu adversário, você pode usar a jogada chamada de “promoção de peão”. Assim, você pode trocar seu peão por uma peça mais valiosa: cavalo, bispo, dama ou a torre.




Comentários

  1. Muito legal Lu conhecer um pouco da sua história...continue nos encantando , por favor🙏🌻🥰

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  2. Lindo conto!!!!! Professores podem realmente inspirar crianças e alavancar essa alma de artista!!!! Adorei como sempre!
    Graças a Deus temos vc!!!!

    Um super bjo
    Da sua fã número 01,

    Anna Gabriella

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  3. Comecei a série hoje, graças aos hackers. A série realmente está sendo muito comentada (pelo menos na minha bolha). Mas apostei que o tema da semana seria a invasão do STJ. Beijos, Dona Lu. Obrigado, adoro seus textos. Boa semana.

    Paulo Bigonha

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  4. Muito legal esse texto . Na infância tudo é muito marcante mesmo ����������
    Retomei a leitura da série Para gostar de ler.
    Levei um susto, eu amava. Agora os textos são muito bem escritos etc... mas são velhos.
    Prefiro sua temática à la Clarice
    Não envelhecem.

    Karla Liparizzi

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  5. Doida pra ver a série, parece boa.
    E o texto, como sempre, ótimo!

    Juliana Brandão

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  6. Nossa, admiro a sua disciplina e empenho! Você escreve muito bem!

    Katia Gerlach

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  7. Que jogada de texto! Sempre terei abertura para os teus escritos. E me promovo a teu leitor a cada dia.

    André Ricardo Aguiar

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  8. Assisti à série e gostei bastante!
    Seus textos, adoro!
    A professora visionária escolheu bem você como Emília.

    Patrícia Dellany

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  9. Pois eu estava certo, alguma coisa especial precisava ter acontecido, diferente das monotonia das quadras Norte e sul, para alavancar a formação da menina. Queremos escolas desse nível para todos os meninos e meninas do Brasil

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