O trenzinho da candanga


Texto sob encomenda me lembra os tempos de redatora publicitária. Tirar da cartola o slogan mágico para vender um produto quase sempre sem sal.

Mas a imagem que suscitou o pedido não tem nada de vazia, é verdade. É que a amiga viu além da fotografia que tirei. Ela enxergou completude quando apenas mirei recorte.

Eis o mistério da Arte (perceba a soberba em classificar minha fotografia como tal): você cria x e as pessoas fruem todo o alfabeto. Quem pode, pode, e essa amiga carrega galáxias dentro dela.

Daí topei o desafio. Olhei para o momento capturado de novo. A atração pelo abismo e pelos trens. A inesgotável ânsia de viagens.

Ouvi o som monocórdico dos vagões pesando sobre os dormentes. Eu ali, da janela, entre Brasília e Uberaba. De Berlim para Praga, contemplando as árvores e os casebres. O mato virgem, as monoculturas depressivas... Vaquinhas à sombra para despistar o calor, cavalos nas pastagens. Uma estação abandonada, outra a fervilhar: parada obrigatória.

O vão entre o trilho e o chão acolhe meu coração viajante. Não sinto o peso da locomotiva, apenas a fluidez da borboleta amarela que quase toca meu braço esticado para fora.

Volto à infância das dezenas de mariposas incrustadas na parede branca da fazenda rústica.

A encosta mineral era a própria alma dando risadas rosas. Ciranda de pedra. Ladeiras de Minas. Adélia Prado e eu jogando conversa fora. Com Drummond o papo não fluía, dom casmurro que só ele: telepatias e silêncios fecundos.

Transcorreram dias nessa toada onírica embalada em ferro, mas toda partida tem chegada. Na morte também se aporta em algum vilarejo?

Vesti o chapéu, desamassei a longa saia com as mãos e desci os graus, tocando a sapatilha de ponta no cascalho do fim do mundo. Não havia nem dois minutos que me pusera a perscrutar a foto.

(Para Karla Melo, que me fez viajar de casa no feriado)


Comentários

  1. Muito bom!

    Filomena Garcia

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  2. Este comentário foi removido por um administrador do blog.

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  3. O que escrever mais, meu Deus? Tá tudo aí. Obrigada, Preciosa amiga!

    Karla Mello

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  4. "O vão entre o trilho e o chão acolhe meu coração viajante"...Belo!

    VoCastro

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  5. bela crônica, lu. me remeteu a uma viagem que fiz de Castelo Branco a Lisboa, no último terço dela, eu vigiando o Tejo pela janela, de trem, claro.

    André Ricardo Aguiar

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  6. Estas viagens alheias também me põe nos trilhos.

    André Ricardo Aguiar

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  7. Achei lindo o texto. Parabéns!

    Renata Assumpção

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  8. Legal a sua crônica, Lu! Uma ótima terça pra tu!

    Leila Brandão

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  9. Muito bom, Lú! Me senti viajando sem lenço e sem documento.

    Virgínia Pozzato

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  10. Ma-ra-vi-lho-sooooooo!

    Cynthia Chayb

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  11. Suspirei, suspirei, suspirei...

    Clarice Veras

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  12. Gostei da foto e do texto!

    Cecília Soares

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