Postagens

Mostrando postagens de junho, 2012

Banquete bom pra cachorro

Toda vez que a dindinha estava na fazenda era a mesma coisa: ela acordava cedinho, com o primeiro canto do galo, e já ia para a cozinha. Nunca vi gostar tanto de fazer doces e preparar almoços. Dindinha, oras, é a era minha madrinha, a dona Jandyra, capixaba criada no Rio de Janeiro. Lá do Espírito Santo ela trouxe os temperos da moqueca de peixe, com bastante cheiro. Do Rio, o jeito especial de cozinhar feijão preto com linguiça, paio, costelinha de porco: nossa deliciosa feijoada. Mas, na fazenda, dindinha preferia preparar frangos caipiras assados ou ao molho pardo. Além dos doces, é claro. Num panelão, ela despejava o leite e o açúcar e mexia, mexia, mexia... Tanto tempo dedicado para a mistura ficar cremosa, cheirosa, lisinha. O legítimo doce de leite feito no fogão à lenha. Outro dia, ela preparava o doce de goiaba em pedaços. Doce de mamão verde e de banana também estavam entre as suas especialidades. Quando era criança, gostava de ver minha madrinha em ação. Ela andava pra

SuperExpedita contra a correnteza dissimulada

O saudoso Corumbá atravessava a fazenda Salta Pau de ponta a ponta. Era um rio cheio de esses, grande cobra jogando o corpo para lá e para cá, meio preguiçosa. Na época da seca, que no cerrado é dura e longa e deixa tudo sem vida, as águas do Corumbá eram mais bonitas. Ficavam clarinhas, verdinhas, pedindo um tibum. Quando chegam as chuvas, lá para o mês de setembro, o rio ficava barrento, uma mistura de amarelo e marrom. Seu volume aumentava e estava na boa hora para pescar. Foi num desses meses de estiagem, com as águas do Corumbá convidando a gente para um mergulho, que Alessandro e eu resolvemos desobedecer a ordem de ficar bem longe do rio. – O rio não é lugar para crianças. A correnteza é forte e engana até os adultos. Quanta gente já morreu afogada por ali. Assim era o discurso de mamãe para botar medo na gente. A tia Leila, mãe do Alessandro, concordava mexendo a cabeça gravemente para cima e para baixo. Ando é três anos mais novo do que eu. O único primo que morav

Chapéu de bruxa

Da série "Mato de Molecagens": No sábado, mamãe me acordava bem cedo:  – Vamos, vamos, tá na hora.  Era um fusca azul claro, ou melhor, azul diamante como dizia o documento do carro na bolsa de dona Maria, mãe e também motorista da família de seis filhos. O carro ganhou o nome de Sansão. Escolha digna de sua valentia e força. Levava a gente para a fazenda em sua capacidade máxima, carregando milhões de trecos. A certeza que eu tinha era de que, um dia, o fusquinha seguiria sozinho pela velha estrada, de tão vivo que me parecia ser.  Do caminho poeirento, lá de cima, eu já avistava o telhado. Pedia para a mamãe ir mais rápido. O Sansão zunindo pelos buracos do chão de terra, derrapando nas curvas do morro da montanha-russa, que era a pequena pista de entrada da fazenda. Queria chegar logo na minha casa, que ficava num pé de pequi em frente à sede.  O pequizeiro é uma árvore que dá um fruto carnudo, amarelo-ouro, típico da região. Os goianos adoram fazer arr

Mistérios

A partir de hoje passo a postar textos que compõem um livrinho que escrevi chamado "Mato de Molecagens". Espero que curtam! A fazenda era o destino de todo fim de semana durante toda a minha infância. Com sol ou com chuva, minha mãe botava o fusca na estrada. Vivíamos uma vida simples, de dinheiro curto. Não havia luxos, mas eu tinha um mato para desvendar. Um espaço só meu para crescer aprendendo com a natureza. Quando meus amigos não estavam comigo na "Salta Pau", eu brincava falando sozinha e em voz alta. Montava currais de pedras, cheios de cavalos e vacas de cascalho; bruxas e fantasmas de arbustos. Meus irmãos eram adolescentes, quase adultos, e eu ainda menina me via meio deslocada, filha única, diferente. Sabe como é entrar na sala no meio do filme? Encontrar o último pedaço do bolo? Não entender o que a piada quis dizer? Pois era assim que eu me sentia. Eu tinha perdido alguma parte da história. A parte era meu pai. Eu não sabia o que era morte. Min

Poço dos desejos

Como estou poupando minha cervical nestes dias de dores intensas, vou aproveitar para postar no blog alguns textos inéditos que tenho guardados no computador.  Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com as personagens é mera coincidência, galera! De novo. De novo ela acordou no meio da madrugada com a respiração ofegante, uma ânsia que subia do estômago aos olhos. Foi até a cozinha e comeu uma banana. Abriu a geladeira e tomou um iogurte de maracujá. ‘Maldita insônia’. Tentou dormir novamente no sofá da sala, mas a fome não passava. Uma fome de músculos e lascívias. "Que réveillon do milênio que nada. Eu quero é o homem do milênio".  Vinha tendo uns sonhos eróticos ultimamente. Tentou evocar outro na esperança de aplacar o buraco no estômago. Lembrou do Fábio. O único cara interessante dos últimos tempos. E se eu o convidasse para ir ao cinema. Mentalizou a cena toda. Lá no escuro ela ganharia coragem. Fábio, você vai achar que eu sou louca, mas eu p

Orai e vigiai

Domingo à noite. Os meninos ouvem a mãe reler uma historinha divertida, o livro “A galinha que criava um pintinho”. De mensagem claramente feminista, a narrativa da maravilhosa Ana Maria Machado aponta a moral: na hora H, são as mães que põem a mão na massa e resolvem as situações mais complicadas de forma mais pragmática. Fecho o livro e digo para os meus dois homenzinhos: “poizé, se não fossem as mamães, hein... Os homens geralmente são muito desligados”. “Não somos não”, responde prontamente e ferozmente o primogênito. “Nós somos mais inteligentes. Todo mundo sabe que os homens são mais inteligentes do que as mulheres”. Chocada, olho para aquele que eu pus no mundo, que eu amamentei, que eu instrui sobre os deveres de casa e também para a prova naquele mesmo domingo e paralisei: de onde saiu esse tremendo machismo? O que podemos fazer, nós mães pós-modernas, para evitar que nossos filhos continuem a pensar como nossos pais e avós? Será que o machismo é hábito, gravado a ferro

Mãe, mãezinha, mamãezinha, mamãe

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora Quando se pôde abrir as janelas, as poças tremiam com os últimos pingos. Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema, decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos. Fui buscar os chuchus e estou voltando agora, trinta anos depois. Não encontrei minha mãe. A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha, com sombrinha infantil e coxas à mostra. Meus filhos me repudiaram envergonhados, meu marido ficou triste até a morte, eu fiquei doida no encalço. Só melhoro quando chove. (Dona Doida - Adélia Prado) Será que todo mundo sente falta da mãe como eu sinto? Porque a falta que minha mãe me faz me parece tão absurda e sólida após dois anos e alguns meses que não sei se vou me adaptar a seguir como órfã, ovelha desgarrada sem filiação.  Mas nada posso fazer, a não ser não ser mais feliz. Esse conceito deixou de existir como ideal a partir d

Grotão ni mim

Houve um tempo em que o tempo era medido pelo sol nascendo atrás das montanhas e se pondo do outro lado. Um tempo em que nem bússola nem pontos cardeais existiam de forma oficial e explicada.  Um tempo em que a gente pegava galinha viva no terreiro para comer mais tarde. A galinha que tinha penas que não eram fofas como os pelos dos cachorros trançando em nossas pernas. Amarrada, a ave ficava o dia todo esperando, sem saber que era o seu fim: com a lâmina no pescoço - o sangue guardado para o molho pardo - ou com o pescoço quebrado, para cozer com pequi.  Houve um tempo em que não havia TV lobotomizando os olhos que tinham tempo para se erguer para o céu e desvendar constelações: aquela ali é de Escorpião, Órion, Três Marias, Cruzeiro do Sul... As nucas cansadas de segurar a cabeça entorpecida pela Via Láctea. O clã se reunia em volta do fogo do fogão à lenha e contava histórias de assombração. O breu engrandecia os medos primitivos naquela vida sem pretensões.  Houve um

O falso vilão

Sem nenhuma ideia inspirada. Não, nada disso. Sem nenhuma ideia. Ponto. Ter ideia semanal já é complicado, inspirada, então, é para quem pode. Martha Medeiros largou o blog dela de lado exatamente por isso. Disse que era impossível manter a constância e não se sentir exaurida dos possíveis bons temas para os seus próximos livros. Ela tem razão. Como eu não tenho contrato com nenhuma editora, só me resta ralar até conquistar meu quinhão de notoriedade literária escrevendo, mesmo com parcas ideias. Conexões telúricas desses dias: li um artigo do blogueiro Alexandre Matias falando de sua saída “forçada” do facebook. A empresa errou e o desligou sem motivo. Entre surpreso e aliviado, ele discorreu sobre o assunto em seu espaço garantido no jornal O Estado de São Paulo. No dia seguinte, ontem, meu primo me envia outro artigo em que o facebook é a estrela. Agora nas palavras da articulista (também do Estadão) Nina Lemos. Ela escreve que largar o facebook é o correspondente pós-

Papo de balcão

Algumas tradições são boas. Não incluo nessa lista a TFP ou qualquer outra tentativa medíocre de manutenção de preconceitos. Mas algumas tradições são boas, como a de frequentar aquele bat restaurante que resistiu à sua infância e vive até hoje. Ou de levar seus filhos para um sorvete na Moka’s, a sorveteria mais antiga de Brasília. O lugar sobrevive, pequeno e discreto, no coração da 112 sul.  O sorvete, com tanto gelato italiano cremoso e suspirante por aí, parece prosaico. Mas o preço ainda é razoável e a bola farta. Desde 1980 sem mudar nada, inclusive o painel de recadinhos e cartões de apresentação caótico que fica na parede da direita.  O garoto pediu uma bola de chocolate com flocos ao dono. Um senhor esbelto que eu nunca achei particularmente simpático. Aliás, que eu sempre o tomei como um tanto rabugento. No momento em que chegávamos, um contemporâneo dele, também de cabelos brancos, se despedia. Acho que a nostalgia do papo antigo somada à aparição do meu filho fe