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Mostrando postagens de outubro, 2022

Cantiga

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Nem tudo são lástimas e penas. Há o amor da noiva que se casa num domingo de primavera e, na segunda, distribui bombons de morango aos colegas. Há o amor de um cão por outro cão. Amor de amigos que se reencontram após considerável hiato. É o genuíno afeto entre duas crianças pequenas que se tocam, se olham e sorriem uma para outra, num reconhecimento tátil-olfativo mútuo. Há ainda o amor deste cão para com o seu tutor. Amor que sofre ao ser deixado sozinho, no mesmo átimo em que se alegra e esquece a dor, ao se colocar ao alcance de um carinho. Há o amor do leitor que fala com admiração do escritor, antes que esse se aproxime. Há o amor natural das folhas verdinhas, renascidas da longa seca. Há o amor das cenas prosaicas, dos ouvidos atentos. Da cantiga de roda que emana da escola pública colorida e bem cuidada. Há o amor celeste dos que têm fé e o amor terrestre dos que caminham de mãos dadas. Desconfio que haja muito mais amor no mundo, embora a atual escuridão nos delimite.

A vida (como ela não deve ser ) em dois episódios

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As camisas da seleção de futebol tremulam ao lado das bandeiras, nas entradas de várias superquadras, as esquinas de Brasília. Domingo quente, falta chuva e já é outubro. O dia estala. Tem esse modelo em azul, tamanho P adulto? As amarelas, neste momento, estão fora de questão. Tem, sim. Eu também sou Lula. Meu marido é bolsonarista, mas eu fui votar no primeiro turno de camisa vermelha e disse: Você tem de me respeitar! Que bom ouvir isso! Meus filhos já gostaram de vestir a camisa Canarinho, mas agora não querem ser confundidos com bolsominions. Triste um país refém de símbolos nacionais sequestrados por facções criminosas. Pois é, como ser Bolsonaro? Eu sou enfermeira em Santa Maria e, na pandemia, tudo o que eu fazia era baixar corpos. A gente trabalhava sem condições, sem material de segurança. Num único dia eu baixei 20 corpos, 20 corpos. E ele vim falar que era gripezinha? Não dá! Domingo de novo. Agora nublado, úmido, grávido de expectativas densas. O caçula me acorda de um son

Imanência e transcendência

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                                                                                           “Cada homem em sua noite parte em direção à sua luz”. (Victor Hugo) Tenho sonhado com casas, com espaços familiares de convivência, com plantas nos jardins. Maior a solidão, mais elaborada a imagem do aconchego. Desterrada, destelhada na vida. Amparada, abraçada no devaneio. Alma de choupana, pau a pique, se resfolega na serenidade das lombadas de livros ao redor, num cômodo com tapetes iranianos libertos, tapeçarias medievais idílicas, grafites de OSGEMEOS. Janelas imensas com vista para a serra, pés descalços na grama, mãos na argamassa da alegria. O banheiro tem uma luz natural que cai enviesada sobre a cerâmica pintada com peixes azuis. Mamãe aparece sem avisar como sempre. Me divirto. Cadê vovó Paula? Ainda não veio... A sobrinha se aninha ao meu lado, calorzinh

Brechó também é cultura

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Zapeando pelo "Coisa e Tal", ouço uma mocinha de cabelos grisalhos papeando com alguém na cabine de provas: Acho que esse está bom para o dia D. Será que vou ter de subir ao palco? Você lembra, no ano passado, a Lu Barreto ficou doida com os meus sapatos? Interrompo a conversa de amigas unidas delas. Luciana Barreto? Eu conheço a Lu, também sou amiga dela. É, parece que eu te conheço também. Você já foi no Sebinho? Claro, muitas vezes. Meu nome também é Luciana. Luciana Assunção, e eu também escrevo. Eu sou Valéria! Dia D. é o Dia do Drummond? Isso. Mas dessa vez será no no início de novembro, dia 3. A amiga escondida pela cortina do provador entra em cena: Luciana, tudo bem? Oi, reconheço Eva e lhe dou um abraço. Ué, vocês se conhecem?, pergunta Valéria. Eu sigo ela no Instagram e adoro. Você já publicou? Valéria quis saber. Sim, meu primeiro livro saiu em 2019. Por qual editora? Confraria do Vento, do Rio. É de poesia? Segue, Valéria. Não, de crônicas. Ah, adoro crônicas.

Dos lagos à Serra

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Armação Neste chove, não molha mormaço 'muguengue' (dizia Maria) sargaço tempo. 'padinha, pastel, têm. Barquinhos de papel sombreros amarelos na falta do Sol têm. Quioscos hermanos moluscos búzios oráculos africanos (também têm). Quebra: molas ossos ondas vão. Sambaquis sambas santas vêm. Muvucal Gaivotas e urubus compartilham peixes e pedras numa versão brasileira de Ebony and Ivory. Ao longe, um bando de garças se espalha pela restinga. De perto, desfaz-se a miragem: é uma única garça rodeada por sacos plásticos. Ainda há um caminho tortuoso a percorrer… A caatinga fluminense é uma vegetação de clima semiárido que ocorre nos municípios de Arraial do Cabo, Armação dos Búzios, Cabo Frio, Iguaba Grande, São Pedro da Aldeia (Região dos Lagos), no estado do Rio de Janeiro. A paisagem apresenta cactos gigantes, arbustos retorcidos e pequenas flores. Eu gostei. Mar e sertão juntos, lado a lado. Não precisa um se transformar no outro como na maldição do Conselheiro. A cor do ocea