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Mostrando postagens de setembro, 2020

Posto que é chama...

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Para Bernardo Mello A vida é a noiva do Frankenstein. Combina coisas e pessoas desconjuntadas num mesmo tempo-espaço. Um prato de self-service no qual você mistura fricassé de frango com salada de berinjela. A eterna insistência de unir o que é desunido por natureza. Murro em ponta de faca. Água mole em pedra dura. A vida só é possível reinventada. Cabal. Entretanto, viver se desenrola pelas reticências até o ponto final. Um e-mail sem descrição do assunto. Um assunto sem o conteúdo da mensagem. Rotina espantosa. Sustos previsíveis. Opostos que se atraem para se repelirem com aversão após o décimo desencontro. Para morrer basta estar vivo. Mas como quantificar o basta: bastante, apenas o suficiente? Vegetais também são seres vivos. Micro-organismos existem, tal qual moscas e ratos. Todos vivinhos da Silva. Pior, barata. Lépida, até avoa. Viver é muito perigoso: dá ideias, ganas. A vida é sertão árido que abriga o oásis para quem tem sede de cruzá-lo. É densa floresta onde se perde o en

Bolero ao meio-dia

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Estacionei o carro nas vagas enfileiradas do bloco de apartamentos. Como uma pontada, veio a imagem de minha mãe parando o carrinho prata dela no mesmo local, sempre animada para ver a filha e os netos. Fechei os olhos e lembrei imediatamente de um poema escrito na juventude. Não era para a minha mãe, claro, os amores juvenis são tão passionais. Mas hoje passa a ser. Sentimento de orfandade também é visceral. É nas segundas que sinto saudade de ti. Na preparação do jantar sozinha, mastigando pensamentos confusos na cozinha fria e bagunçada. É quando entro em meu quarto que sinto saudade de ti. Arrumando roupas espalhadas como as tuas que também já estiveram assim, tantas... Nua na cama sinto saudade de ti. Na doce preguiça de não ler, não escrever ou na poesia que finjo te dar. É quando consulto minha agenda e repito os pequenos rituais da vida que sinto saudade de ti. E quando estou cansada, à beira do precipício, também sinto saudade de ti. Porque acompanhar teus gestos distraídos ac

Senti(n)do

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Música para os ouvidos é o shhhzzz do pneu no asfalto molhado. A onomatopeia invade a manhã mais clara do que o sol, cansado de sua onipresença. Luz gris da primavera flores se mostram em relevo sobre o cinza ainda invernal. Caules caiados despontam como mãos em prece. Folhas se alongam debaixo da ducha de chuva. Ecoam as árias-pássaras de gargantilhas límpidas. O canto é um cristal. A natureza toda se banha de transparência. Venta suave e úmido. Septos nasais e pulmões absorvem a prenhez primaveril: abastecem-se de estupor juvenil. O frescor atinge níveis moleculares. Renovação de votos: (tudo o que desejares).

Extremófilos

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O breu da chuva é a única escuridão bem-vinda no Planalto Central, morada de seres extremófilos*, fustigados pelos limites da aridez quase caatinga. O som do trovão não amedronta. Soa melodioso aos ouvidos sedentos. As folhas se voltam para o alto. Nosso coração está no céu que desabafa choro copioso, guardado tanto tempo no peito das nuvens, antes pálidas e reprimidas. Agora, densas e coradas de tempestade. É um marco, um acontecimento, uma mudança de estado físico: do pó à lama.  Relampeja. Apenas os cães se escondem debaixo das camas ou das mesas. Os demais rejubilam-se: aleluia! Por suposto, a chuvarada atrai também um câmbio do estado de alma: da avareza para a abundância. Dos humores ressequidos aos sorrisos de estamparia, aos suspiros aliviados. Uns vão se entediar daqui a pouco com a temporada tempestiva. Outros vão sair cantarolando, dando a máscara à tapa. Com o cheiro de terra molhada, retorna um sentimento familiar. Os ciclos naturais se repetem, mas quanto a nós, seremos a

Escrutínio

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"A arte de perder não é nenhum mistério; Tantas coisas contêm em si o acidente De perdê-las, que perder não é nada sério. Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero, A chave perdida, a hora gasta bestamente. A arte de perder não é nenhum mistério"... (Elizabeth Bishop) Sentaram-se frente a frente, olho no olho. Cara limpa, sem máscaras de ambas as partes. A proximidade era menor do que os dois metros recomendados. Sentada, uma tinha a altura da outra, de pé. Foi nesse momento que se perceberam em profunda intimidade. Iniciou-se um escrutínio mútuo. A que sentou carregava um sorvete. Fazia muito calor. A manhã havia sido de dores de cabeça, problemas internéticos. Ela merecia aquela travessura: duas bolas na casquinha. A que estava de pé, estoica, observava a outra a se deleitar com a estripulia cremosa. A língua sorvia o frio e a doçura. Lábios e olhos se fechavam na sincronia do desejo satisfeito. Sentiu inveja daquela mulher sentada à distância de um toque, porém inatin

Transeuntes

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A calçada ali na frente é um recorte colorido e barulhento da cidade. Microcosmo em atividade quase incessante. Breves pausas noturnas, entre as horas mais quentes. No mais, pulsa o ritmo da rotina em passos esportivos, de scarpins, chinelos.  Rodas da bike transportam ganha-pão ou só diversão. Lamento de bebês nos carrinhos vigiados por pais zelosos, babás cansadas; pais cansados, babás jovens. Há os que caminham sozinhos, o grupo de amigos, casais hetero e homo. Duplas femininas e masculinas. Sombras e sóis, chuvas e saruês. Vai e vem de velhos, de moradores de rua, de transeuntes perdidos de si mesmos. Alguns ouvem música, uns ouvem os pássaros. O ruído dos carros e das motos é constante, assim como dos latidos dos cães de variados tipos e tamanhos. Há noites invadidas pelo ressoar de cascos no concreto. Algazarra infantil dos dias de abril tem também. Às vezes passa o maluco da quadra a gritar impropérios. Noutras tardes, o clarinetista de Pã. Sirenes de ambulâncias e da polícia po

Namoradeira

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Ando com um delay de datas, como se já não me importasse em ser precisa, em demarcar o tempo de calendário. Distingo claro e escuro, lua e sol, sete horas de trabalho e as demais de pouco sossego. Mas conto os minutos para ver a chuva de novo. Todo ano a resistência e a resiliência do existir calango-candango no pó de quatro meses sem uma gota do céu. Água, só das lágrimas. Soube que foi celebrado o dia do cerrado dia desses. Taí, não se ama o cerrado do dia para a noite. Ao menos não foi assim comigo. Precisei curtir o afeto em barril de baru, pequi e gueroba por secas e por trovoadas, secas e trovoadas até que fosse capaz de entender tamanho sofrimento do homem e das árvores contorcionistas. Braços-galhos a suplicar pela compreensão de tão dramática e tortuosa trajetória-convivência. De alguns verões para cá, passei a enxergar beleza contida na feiúra. Porque amar a florada do ipê não é digno de nota. Reparar no carmim da calliandra é de lei. Evoluí ao verso de Adélia Prado: "qu

Gorjeios

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rastros resquícios remains of the day vestígios datados reminiscências reticências memórias falhas folhas restos sombras traços resíduos úmidos húmus vésperas recitam  enClave de Sol. A lua na rua, nua. A nuvem, fuligem, pluma. O pássaro no poste, sofre: anseio de beijá-la.

Dreamline

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"Você deve compreender-me se eu quiser sonhar"... (Márcio Greyck, do cancioneiro brega da década de 1970) "Pendurei velhos fantasmas, no armário. Tranquei as portas, apesar da existência das frestas". (Paula Valéria Andrade) Existem pessoas com quem sempre sonhamos e outras como quem nunca sonhamos. Não se trata de viagens oníricas recorrentes ou iguais, tal qual pesadelos obsessivos, terrores noturnos que alguns sofrem ao longo da infância ou até mesmo na vida adulta. É sonho diferente, mas com a mesma pessoa, entende? Por que invocamos uns com maior frequência do que outros?  Penso que não tem relação com a intensidade do amor, não. Há gente que amo pacas e com as quais nunca tenho um sonhozinho sequer. Tampouco tem a ver com desgosto. Pode ser um sinal de saudade. De incompletude. De insegurança. Do sentimento de inadequação ou de inacessibilidade. De projeções. Por exemplo: sonho muito com uma grande amiga desde 1989. Brinco que ela é o meu alter-ego onírico. De

Sânscritamente

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Japamala. Japamala. Preciso mentalizar a palavra 108 vezes para não trocar as sílabas e dizer jamapala. Ainda hoje me confundo, as distrações da mente. Japamala, um rosário hindu. Acho bonito usá-los como colares, católicos ou indianos. Me sinto monástica, metafísica, metafórica, alegórica. Sempre gostei daquelas pessoas com vários cordões no pescoço, mistura da estampa das roupas com pedras e prataria de diferentes comprimentos. Se tivesse uma cervical que prestasse, seria a senhora penduricalhos. Ontem revi a mestra e amiga de tantas práticas e ensinamentos yogues. Lá estava ela, se tornando uma sábia árvore de vasta e generosa copa prateada. O companheiro japamala a adornar o colo. Ela foi a primeira mulher que vi ao vivo a desfilar com eles. Quando nada sabia de evolução espiritual, achei se tratar de colarzinho hippie feito de sementes vendido aos montes em Arembepe. Não tinha ideia de sua mística meditativa. Agora, só de vestir o japamala que ela me trouxe de presente do país dos

Nude

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A lua na rua, nua. A nuvem, fuligem, pluma. O pássaro no poste, sofre: anseio de beijá-la.

Pseudopoema

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Para a tia do coração, Socorro Melo A tabuleta da banca de verduras diz: temos cajú. O nome não tem acento, mas, assim, fica mais suculento. O sinal agudo é o fio que pinga ao mordermos a carne fibrosa do pseudofruto. A seiva travosa escorre pelas mãos e o aroma adentra pelas narinas. Saudades das várias Teresinas... Cajúúúú, assovia o nordeste vento.

Ao natural

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A nuvem não tá pra chuva, mas faz pose coraçãozinho, como se fosse pedir perdão pelo estresse hídrico imposto ao cerrado nessa época do ano. Ao ipê resta gritar em florada de decibéis agudos.  Quanto mais sedento, tanto mais florido. Mágica: extremo sofrimento parir tamanha beleza.  O nome é masculino, porém o ipê é uma mulher que pare um filho por ano.  Naturalmente.

Picardia

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Desceu as escadas serelepe, de chinelas flip-flop, flip-flop.  Atravessava a rua ao perceber que estava sem máscara. Aterrorizada, levou as mãos à boca para estancar o grito. Piorou a situação, pois não. Se viu despida em praça pública. Já não sabia o que era a liberdade.  Compreendeu a burca. Tem assimilado muitas coisas no regime de vida surreal. Culpou a minissaia que esvoaçava e lhe dava a picardia de Monroe sobre a ventilação.  Sentiu-se feminina, menina. Uma coisa leva a outra, pois sim.