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Mostrando postagens de dezembro, 2019

Feitiço

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Perderam a conta de quantos apartamentos haviam visitado naqueles dois meses. Era uma decisão difícil escolher o lar ideal quando se tem dinheiro contado, suado e economizado por tanto tempo. Cada imóvel que conheciam lhes dava a certeza de que o ser humano é de fato sui generis. As reformas escalafobéticas se sucediam a cada porta que se abria. Num deles, havia uma banheira de hidromassagem postada no meio da sala de estar. Há que se receber os amigos para um banho turco, pois, sim. Em outro três quartos, o banheiro da suíte havia se fundido ao próprio quarto do casal. O amor tudo suporta, inclusive assistir ao amado com prisão de ventre sentado no trono, vá vendo. Cozinhas americanas, ladrilhos portugueses, louças francesas. Granitos tumulares por toda a habitação. Papéis de parede florais dourados para um eterno último baile da Ilha Fiscal. Esse vocês vão adorar, acreditem, tentava encorajar o diligente corretor, que estava perdendo a esperança de receber sua gord

Rave Quântica

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Plácida maneira de iniciar o sábado. Me acompanhe por favor, tire toda a roupa, fique só de calcinha e vista essa bata. Aqui está a chave do armário. Ressonância magnética, aqui me tens de regresso. Desse vez, uma escaneada da cervical. Já fez esse exame antes? Sim, virei habituê. Cotovelo, joelhos. Sem falar naquela de acompanhante do filho, quando ele quase quebrou a cabeça no parquinho da escola. Agora, estava preparada. Sabia que não podia balbuciar meus mantras, pois os vigilantes do lado de lá do vidro captam tudo. Quer um cobertor? Pode ser. Entrei no tubão. Que a rave comece! Puta que o pariu, me esqueci que estou no climatério, tô assando aqui debaixo dessa coberta. Vou suar em bicas em três, dois, um e não posso me mexer.    Procure ficar bem quietinha, ao engolir a saliva, faça bem devagar e não movimente a boca. Tá, entendi, mas fazer sauna não estava no meu chart. Tentei abstrair, respirei fundo e mentalizei os sons do universo, missão complexa com tanto

Confessionário

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Ontem conversava com a minha sogra sobre o assunto. Disse a ela que religião deveria iluminar as pessoas, não emburrecê-las. Mas, infelizmente, o que vemos é o indivíduo crer que a fé dele, de foro íntimo e personalíssimo, deve ser imposta, transferida para os outros, mesmo que a fórceps. Daí todos os fanatismos que culminam em carnificinas desde as Cruzadas ou antes (me desculpem pelas imprecisões acerca de um tema que não é muito do meu agrado). Cresci dentro da igreja católica, literalmente. Passava meus fins-de-semana entre a São Judas Tadeu e a Catedral Metropolitana de Brasília. Minha madrinha era quase uma beata, devota do santo cuja a imagem herdei. Entretanto, não me lembro de atitudes catequizadoras por parte dela. Dindinha sempre respeitou minhas escolhas, respeitava também a anarquia de mamãe. Quanto mais envelheço, mais percebo o tanto que essa velha preta me ensinou.  Nunca tive preconceito religioso de nenhuma ordem. Já frequentei terreiro de Candomblé

Brevíssimos Prolegômenos

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ou Exsurge, inconteste, dessarte: Osmundo (se ele se chamasse Raimundo seria uma rima, não uma solução). Podia ser título de uma exposição: Osmundo de Osgêmeos.  Tarlan (ação rápida contra torcicolos) Raildo (o que rafoi) Hitanielton (alcunha que passa de geração em geração como homenagem, mas na verdade é uma maldição) Pablinie (nome social para os que não querem ser Pablo) Eutácio (os pais não gostam da letra Q) Osmir (irmão gêmeo do Osmar) Laudemir (o cobrador do laudêmio) Laone (a primeira, a única) Reslia (réstia de coisa qualquer) Rogel (marca de spray para cabelo) Zoélia (zoado - pessoa muito doida no gás hélio) Deyver (concorrente do Dover) Vandair (seria um vândalo por aí?) Ronilson (remédio para ronronar) Vangerly (sabonete íntimo feminino) Valdilson (o dono do megafone) Cledson, aumenta o som!

Ternuras

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Tudo o que estava precisando, então, era tomar (uma injeção) na bunda. Médico bom é isso: lhe brinda com elogios aos seus cabelos, diz para não se culpar tanto (parte do tratamento) e lhe aplica uma injeção de felicidade instantânea. Ele disse para eu lhe contar como estaria daqui a dois dias. Bem, digo hoje: estou me sentindo energizada como há tempos não experimentava. Que drogas foram essas, dr. Edgar? Não me importaria de levar uma picadinha dolorida dessas toda semana. Daí acordei às 5h30 da matina naquela disposição típica dos 20 e poucos anos. Fui atrás de uma missão que vinha adiando: caçar, entre os guardados afetivos e profissionais, todos (todos nada, tenho pilhas e pilhas de papéis, cadernos e agendas em um armário gigante na garagem da sogra) a cópia do livro infantil que escrevi, lindamente ilustrado pela amiga Isa Frantz. A ideia é resgatar esse projeto para ser publicado pela Editora Confraria do Vento (editado pela preciosa Karla Melo), com a qualida

Pati-amargosa

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Custava ter seios pequenos e serenidade grande? Meteu uma faca no peito e morreu. Ao menos partiu despeitada, a ingrata. Sim, ingrata. Nem pra me mandar uma mensagem no zap. Vamo levar o pequi, moça? A pergunta tirou a mulher de seus pensamentos embaçados sobre a morte da vizinha. Era domingo, dia de feira. Ela gostava de passear entre as barracas de tudo um pouco. Galinhas vivas ou desmembradas, linguiças, queijos, meninos remelentos, milho na espiga, quiabo, gueroba, melancias.  Aos domingos não ia à missa, preferia a feira. Ritual de comunhão com a intensidade da vida das gentes da roça, uma conexão ancestral com a terra. Gostava de ver o balé dos feirantes que tomavam a rua inteira, encarapitados em barracas de teto plástico até o fim da ladeira. O caos da lida para ela era contemplação. Um mantra que acalmava os sentimentos perplexos daquele domingo. A vizinha sempre fora amuada, mas ela insistia na amizade. Levava bolo, tocava a campainha sem ser co