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Mostrando postagens de maio, 2019

Playlist para um funeral

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obra de Tatiana Clauzet Realizar sonhos é bacana, mas não garante felicidade eterna. Aliás, a impermanência é um dos pilares da existência. Precisamos conviver com os picos e vales da alma, com a finitude biológica, definitiva, e também com as pequenas mortes diárias dos desejos e dos planos que fenecem pelo caminho. Não tenho super expectativas em relação ao lançamento de “As Desventuras de uma mulher que levou um susto e sobreviveu”. Não creio que ele vai mudar minha rotina de forma significativa. Espero estar enganada, é claro, caso contrário não seria uma pisciana de juba.  obra de Tatiana Clauzet As peixinhas têm imaginação fértil e versátil. Adoraria me transformar numa escritora que lança um, dois, três, quatro almanaques da “vida como ela é”. Entretanto, a maturidade me resgata do delírio e informa que as projeções estão no terreno do onírico, ainda e sempre. Vou me equilibrando nesta slackline . ‘Nossa, tá na hora!’ Qual é mulher que não se desdob

Derivações sobre o cubo de Mr. Otis

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Passei o dia imaginando escrever uma história sobre elevadores. A manicure me notou tristonha: “Você está muito quietinha hoje”. Ah, lançar livro é exaustivo. Um empreendimento físico avassalador. Violenta emoção concretizar um sonho que de tão sonhado, tornara-se fossilizado (“minha alma de sonhar-te, anda perdida”)... Mas vender livro, aí, sim, vocês não tem ideia. É foda. Tarefa muito mais esquisita do que escrever dez romances.  Esse lance de se colocar na vitrine é muito tenso e exibido. Nem meu lado leonino me furta da sensação de vergonha, de autopromoção. A editora da Confraria do Vento me alertou: “o elogio tem de vir do outro. Sua tarefa é mostrar o livro, a honestidade dele: tá aqui o resultado do meu trabalho. Você não está se autopromovendo, fique tranquila”.  Mas quem disse que fico? Talvez para tentar me aprumar, a manicure contou: “Ontem à noite eu estava rindo sozinha lendo o seu livro. Meu marido me perguntou por que é que eu tava rindo e eu

Quarta Dimensão

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Ainda que sofra com a zoeira do marido, do primo-irmão e de outros seres racionais e descrentes do planeta, sigo me divertindo com as coincidências que a vida me dá de presente. Porque as recebo como bons presságios.  A Lei de Murphy é impiedosa, verdade, mas prefiro contabilizar as conexões telúricas, essas, sim, um bálsamo para refrescar a rotina. Jato de água termal geladinha nas bochechas vermelhas.  Perigo é encontrar sincronismos felizes em tudo, compreendo. Virar uma espécie de Pollyana, logo ela, nunca dentre minhas personagens favoritas da literatura infanto-juvenil. Mas creio que não corro esse risco, dada a natureza nebulosa da alma que me habita. E essa alma escaldada, cansada e insone é parada dura. Ela não se regala leve por qualquer casualidade que se apresente faceira não. Tem de ter densidade e raridade, que nem a que me apareceu ontem sobre a cama. Minha sogra avisa pelo zap que pegou um exemplar de “As Desventuras de uma mulher que levou um

Bonnilu ou Luciclyde

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A aula de balé havia sido das boas: pesada, difícil. Ela gosta quando o corpo reclama e renasce mais potente. Desceu a escadinha da escola para bailarinas adultas ao lado da colega de turma, a noiva apaixonada. É gostoso assistir ao desenrolar do sonho afetivo de outras pessoas, relembrar o vivido. O mundo é belo por isso: não apenas as mazelas e terrores se atualizam, mas também as narrativas de amor. Ao começar a atravessar a W2 Sul na escuridão do outono, um automóvel branco estanca em frente da dupla. O motorista grita de seu posto: Luciana? Atordoada, a mulher de meia-calça rosa faz um gesto afirmativo com a cabeça. O homem insiste: o seu nome é Luciana? Ela segue paralisada diante do fim iminente. Imagina logo a cena de Bonnie and Clyde: o homem saca o fuzil (que em breve será permitido a todos os civis insanos de um país mentecapto) e dá uma rajada de balas pela janela aberta. Pronto, tá lá o corpo estendido no chão. Mas por quê? Que desafeto poderia

Flechada

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Não tem comparação. Mar é mar, Brasília é Brasília. E como ela, o conceito de superquadra é único no mundo e extremamente civilizado. Assim respondi à editora de “As Desventuras de uma mulher que levou um susto e sobreviveu”, ao me dizer, pela décima vez, que detestava a cidade.  Birra tola de recifense que vive no Rio e, de antemão, não consegue ver as qualidades candangas porque o Rio deixou de ser a capital da república.  Não sou uma defensora cega saramaguiana da minha terra-natal, mas caminhar pelas superquadras é passear por um grande parque urbano arborizado e florido. Poucos lugares no planeta oferecem esse tipo de fruição natural em harmonia com a selva de pedra. Vir à Brasília e não conhecer as superquadras por dentro é não conhecer Brasília. Muito se fala do céu do planalto central, porém quase nada se divulga do prazer ímpar de transitar pelas áreas residenciais das 300,100, 200 e 400, que contam com calçadas e ciclovias sombreadas e

Vísceras

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Uma das coisas que eu curtia na Rádio Verde Oliva era ouvir o hino nacional às oito em ponto, no trajeto para o trabalho. O hino é uma coisa linda; a bandeira, outra perfeição do espalhafato (e isso não é uma crítica, pois sou do quanto mais colorido, mais legal). Mas a Bolsonaroland me tirou a alegria de admirar esses símbolos da nossa brasilidade. Se distraída estou sintonizada na estação e começam os acordes patrióticos, mudo de frequência na velocidade da luz. Desenvolvi tipo assim um estresse pós-traumático, eu acho. Igual ao que tenho em relação aos atentados às Torres Gêmeas. Atuei como figurante naquele filme-catástrofe real e vivenciei suas consequências imediatas: depressão coletiva, acirramento dos extremismos. Não é diferente agora. “Essas pessoas na sala de jantar ocupadas APENAS em nascer e morrer” se esmeraram em eleger canalhas, patifes e estúpidos de toda ordem. Bolsonaro, Joice H., Alexandre Frota, Witzel, Ibaneis, Flávio, Carlos e Edu

Toda prosa

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- Filho, terminou “Presos no Paraíso” (romance policial de Carlos Marcelo, ambientado em Fernando de Noronha)? - Sim, faz um tempinho. - Gostou?  - Sim. - E agora, vai ler o quê? - Tô lendo o seu livro. Na intensidade dos últimos dias, imersa na entrega emocional e física extenuantes do lançamento de “As Desventuras de uma Mulher que levou um Susto e Sobreviveu”, não havia reparado na beleza de presenciar um filho conhecendo outro filho, ou melhor, uma filha. Explico. Quando a editora Confraria do Vento me enviou a sugestão de capa (criada a partir de uma foto minha, registro do Museu de Paleontologia de Santana do Cariri/CE), achei tudo muito elegante e sóbrio, ou seja, nada a ver comigo, a representante da estampa em profusão. Pedi aos editores que incluíssem alguma cor naquela proposta. “O título podia ser em vermelho ou noutra cor alegre”, sugeri. Eles testaram toda a paleta de tonalidades possíveis e concluíram que o título não ficaria

Esbarrão com a Oráculo

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Cassandra and the Birds by Trudi Doyle Já preparou a caneta bem bonita? A pergunta da amiga foi providencial. Não, nem havia pensado em caneta nesses dias ansiosos pré-lançamento do livro. Claro, boa ideia! Afinal, basta ser canhota e escrever como uma neanderthal.  Canhotos geralmente pegam nas esferográficas como se quisessem estrangulá-las. E mais: viram o caderno de ponta à cabeça para escrever ou entortam o punho como se sofressem com alguma doença neurológica. Em resumo: é feio.  A foto clássica do casamento a empunhar a caneta como uma criança que está aprendendo a escrever o próprio nome. Quase peço para o fotógrafo desistir do registro.  Só me senti redimida quando vi o ex-presidente Barack Obama, símbolo de elegância e de inteligência, assinar o documento de posse no cargo mais importante do mundo e fazer troça de seu jeito sinistro de ser. Eternizava-se, ali, a bronquice dos canhotos com muita altivez.  Mas eu curto escrever com a mão esquerda ap