Escrutínio
"A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério"...
(Elizabeth Bishop)
Sentaram-se frente a frente, olho no olho. Cara limpa, sem máscaras de ambas as partes.
A proximidade era menor do que os dois metros recomendados. Sentada, uma tinha a altura da outra, de pé. Foi nesse momento que se perceberam em profunda intimidade.
Iniciou-se um escrutínio mútuo.
A que sentou carregava um sorvete. Fazia muito calor. A manhã havia sido de dores de cabeça, problemas internéticos. Ela merecia aquela travessura: duas bolas na casquinha.
A que estava de pé, estoica, observava a outra a se deleitar com a estripulia cremosa. A língua sorvia o frio e a doçura. Lábios e olhos se fechavam na sincronia do desejo satisfeito.
Sentiu inveja daquela mulher sentada à distância de um toque, porém inatingível. De que seriam feitos os sabores? Que mistérios aguçariam o paladar?
Ao mesmo tempo, a que se entregava à gula cobiçava a beleza impassível da que estava ao seu lado, sem nada demandar. O que será existir sem vontades? Sem consciência de sua própria luz?
O sorvete acabou, degustado até a última migalha. Impulso saciado, levantou-se, agradecendo a companhia silenciosa e confidente da outra, com um suave aceno.
A que estava em pé prosseguiu impávida no posto de vigília, à espera da próxima penitente.
Salve esta pro próximo livro, por favor.
ResponderExcluirRodrigo Chaves
Sim!!
ExcluirBelo texto!!!
ResponderExcluirImpactante!
Rodrigo Holanda
Lindo! E obrigada por me apresentar a Elizabeth Bishop!
ResponderExcluirEugenia Jardim
Luciana a mulher de belas palavras que saem naturalmente de seus pensamentos.
ResponderExcluirLeila Brandão
O que dizer?!?! Aceitas um sorvete?
ResponderExcluirCynthia Chayb
Concordo com o colega: vai pro próximo livro!
ResponderExcluirCom certeza você e Clarice Lispector têm algum parentesco!
ResponderExcluirKarla Liparizzi
Belo texto! Vai juntando. Uau, já temos uma excelente coletânea!
ResponderExcluirCynthia Chayb
Muito bom, Lu.
ResponderExcluirAna Cecília Tavares
Adorei!
ResponderExcluirAnne Antunes
Adorei o texto!
ResponderExcluirDjelaine Castro
Continua no próximo?
ResponderExcluirNão, né? Só na imaginação... :)
Aguardando a próxima edição! Que tal uma enquete para o título?
ResponderExcluirFalando em flores e Elizabeth Bishop, tu já viste o filme Flores Raras? Vimos juntos?
ResponderExcluirValdeir Jr.
Tô aqui lendo os "atrasados" rsrs. Sempre gostei de levar a vida no meu próprio tempo. A pandemia me facilitou esta soberba idiossincrasia, hehe.
ResponderExcluirMuita coisa linda tem saído daí, hein, mocinha?
Mas também tenho meus puxões de orelha pra dar... como no caso deste post. Sempre que postar em português um poema criado em língua estrangeira, tão importante quanto identificar o autor é identificar o tradutor. Bishop não escreveu sequer uma única palavra das que você reproduziu. Ou põe o tradutor ou não põe ninguém. Deixa o poema solto, falar por si.
Beijos, abreijoa, saudades, admiração, afetos e carinhos.
Do grandessíssimo pirralho,
Cacau