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Mostrando postagens de agosto, 2021

Diorama

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O quarto imaculado instiga. Não está trancado, mas a porta sempre cerrada pressupõe privacidade. Ela segura a maçaneta e entra de mansinho, como se penetrasse um morango com o garfo. Havia quebrado o código tácito de se manter distante. Banhado pela luz da noite, que trespassa as persianas verticais, o quarto repousa.  Austeridade nas paredes quase completamente despidas. Estoico e casto, o quarto exala um perfume protetor contra os maus cheiros do mundo. Invólucro pálido azulado para a alma se depurar dos excessos. Ela se deita sobre o leito feito. Lençóis brancos, singela alcova. Branca de Neve no féretro, acolhida pelo silêncio. Ao mesmo tempo, experimenta o calor uterino. Nada se ouve além das batidas do coração de Gaia. As retinas se adaptam à penumbra. Ela fita o teto onde a sombra do ventilador forma uma pintura realista: quarto de hotel anônimo.  A clausura lhe reconforta. É um cenário de casa de boneca puritana. Ela, agora diminuta, respira serenamente. Tudo está em seu lugar.

Albatroz

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Para Dani, Kênia, Pati e Karol, hábeis e amáveis instrutoras de voo No princípio eram os dinossauros. A bíblia não menciona a existência deles, mas não havia paleontólogos naquele tempo de temores desérticos.  De fato, espantam demasiado aqueles bichões, ossos monumentais. Às vezes é mais fácil acreditar que Deus criou o mundo em sete dias do que uma explosão tenha sido capaz de gerar animais gosmentos, que evoluíram para animais bizarros, que evoluíram, evoluíram, evoluíram até chegar no mais monstruoso de todos eles: nós.  Falo por mim. Primeiro era desenvolta e ágil como uma típica primata. Gabava-me de haver aproveitado uma infância aventureira em cima das árvores, dos cavalos e dos telhados. Nenhuma fratura em dezenas de tombos. Esqueleto forte, nutrido com leite de curral. Veio a maternidade. Cálcio e tutano se foram na alimentação dos filhotes. Na casa dos trinta, bastou uma única queda da bicicleta - aos moldes de tantas já levadas - para quebrar a articulação do cotovelo.  Daí

Coronarianos

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canhoto  sinistro  canhestro calamitoso enrosco gráfico. tinhoso, esquerdo lado: coronário. penugens painas bolas de algodão doce nuvem felpas filigranas fuligens bolhas  espumas estopas  flocos atomização: a beleza  do quase impalpável mimetismos ninharias  quireras farelos de dentro: estofo. clara transparência reluz  clarividência clamor  de flores na clareira, transcende candeia:  clareia  sentimentos.  Clave solar. 

Não é bem assim...

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O nível de testosterona da mulher está inversamente proporcional ao dos homens da casa. Ela menopausa em reflexões cada dia mais longas enquanto os teens explodem em vigor físico e o marido segue no ritmo de muito trabalho que sempre lhe pautou. Ser um repositório de estrógeno nesse universo XY é um dispêndio energético digno de maratona aquática: se manter com a cabeça para fora contra a correnteza brutal intrínseca dos machos. Não estou falando de homens tóxicos. Uma mulher sob o jugo de um abusador é a materialização do inferno. Mas viver rodeada por homens também não é um idílio. “Ah, ao menos você é a rainha da casa”. Veja bem: não é bem assim. A gente está mais para a “louca da casa”, a “doidinha da casa”, a única isso, a única aquilo. É sempre a minoria a gritar em busca da igualdade da potência alfa, quando, na verdade, você só pretendia existir ômega, entre silêncios poéticos e um pouco de organização: toalhas estendidas, bermudas no cabideiro atrás da porta, camisetas fedi

Bicampeonato

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Ironia define a situação de uma escritora que fratura uma parte do capítulo sem nunca ter escrito um romance. Sem figuras de linguagem, eis o nome do osso quebrado: capítulo. Ainda não me aventurei pelas trilhas das narrativas caudalosas. Parti direto para a ruptura estilística: pulei etapas, pisei na linha, queimei o saque: ambos os cotovelos parafusados. 100% de aproveitamento nas olimpíadas dos destrambelhados. Reprogramar o braço a abrir e a fechar como antes ou parecido com antes, num cenário adverso de articulação reconstruída, demanda longo e torturante processo fisioterápico. Posso protagonizar um TED Talks sobre técnicas medievais curativas para dores de cotovelo. O corpo humano é potência e fragilidade coabitando em camadas: pele, músculos, tendões, nervos e ossos. Sutis, súbitas mudanças na configuração inicial ocasionam gigante efeito cascata em toda a estrutura. Você já não se reconhece e perde a habilidade de fazer movimentos simples como levar a mão à cabeça, descer e ba