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Mostrando postagens de abril, 2020

Três Velhos Tristes

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Ah, inclemente vírus que impinge à velhice um fardo ainda mais dilacerante. O ocaso da vida nunca é leve. Envelhecer nos torna frágeis de alma e de corpo. As carências afetivas são constantes. Sabemo-nos dependentes como fomos quando crianças dos nossos pais. Mas não há mais pais. Há os filhos e os netos, nem sempre por perto. Às vezes não existe ninguém, talvez um sobrinho, primos de segundo ou terceiro graus. Os medos dos monstros debaixo da cama e dentro do armário também estão lá como quando fomos crianças, porém, há a certeza de que eles não são mais do que a sombra da morte a nos espreitar, a falibilidade, a impermanência. Irei para o céu ou para o inferno? Lembrarão de mim com carinho ou destruíram minhas fotos? Brigarão pela minha herança ou farão as pazes que tanto almejei em vida? Ser idoso no Brasil nunca foi vantagem. Uma sociedade jovem, vaidosa e frívola não tem reverência para com a maturidade, com as rugas e com as artrites. Somos impacientes e

Rá versus Pã

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      "Baby, compra o jornal E vem ver o sol Ele continua a brilhar Apesar de tanta barbaridade"... (Frejat e Dulce Quental)   Ah, os dias lindos de abril passam sem a imprescindível contemplação. What a waste! diria Drummond na versão bretã, pois me é evidente que ele sempre será Sir, nāo Mr. Carlos, meu caro, você quem me chamou a atenção para a luminosidade única dos dias de abril, não suportaria uma quarentena sem buscar o pôr-do-sol. Evoco a sua compreensão, portanto.    Mas não fui a única a escapar pela tangente da tarde lânguida. Dezenas de carros estacionaram na Praça do Cruzeiro. À frente, o cerrado quase nativo a emoldurar a amplidão do céu ocre e laranja.    Por alguns segundos, pensei que fosse outubro em Nova Iorque (os matizes vibrantes eram os mesmos). Entretanto, é outono em Brasília, época aprazível, de brisa fria e de árvores ainda verdes. Dirigi em velocidade abaixo do permitido na via, apenas para perceber o holofote s

Infinitude

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Brasília passou da meia idade. Não ficou incólume ao desgaste implacável do tempo. Ainda que tenha sido recauchutada aqui e acolá, com doses extras de colágeno do tipo concreto.  Rasuras, ranhuras, rachaduras avançam em seu rosto famoso. Há mesmo um comedão em sua bochecha do tamanho de um teatro. De longe, se nota apenas a protuberância. Por dentro, o cravo preto oxida na escuridão. Há pouco, levou alguns tombos feios, estremecendo sua estrutura aparentemente perfeita. Precisou ser interditada para algumas rotinas. Foi um alerta terrível, mas serviu para que ela tomasse atitude e reforçasse outros pontos fragilizados de suas asas combalidas, contudo amplas e verdejantes, apesar dos pesares. Brasília sessentona não imaginava atravessar tantos percalços. Sonhava grande, utópica por natureza. DNA forjado pelas expectativas da originalidade; do reflexo altivo do espírito humano livre, igualitário e fraterno. Cresceu ciosa de sua autenticidade.  O peso dos ano

Blurred live

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Calundu, banzo, bode, azedume, ranço, deprê. Sinônimos de um mesmo estado de espírito que, se não é coletivo, carrego sozinha nos ombros.  Ponho adoçante na máquina de lavar roupa; amaciante na xícara de café. Os relógios não fazem tanto sentido, a vaidade, muito menos.  Entretanto, os dias de semana ainda dizem alguma coisa: hoje é sexta. Significa que amanhã e depois não haverá revisões. O computador pode ser deixado à margem do trabalho para incursões mais produtivas. Tenho consciência dos dias do mês porque abril reúnem muitos aniversários importantes na minha linha do tempo.  Que ironia termos tantos feriados em 2020 e perdê-los para o isolamento. Parece castigo vindo de um deus puritano workhalic. Morreram Rubem Fonseca e Garcia-Roza. Há tempos li uma obra do segundo e encafifei que era do primeiro. Distrações. Faz um friozinho aprazível de outono-inverno. As árvores dançam embaladas pela música do vento. Com os ruídos urbanos abafados pel

Hipóteses

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Gosta de chá. Espantoso, ela sabe. Não tem ascendência inglesa. Não nasceu numa cidade de invernos frios. Também não veio ao mundo no Rio, pra ter fissura por mate gelado. Não desgosta, mas prefere a versão quente. Não sei o porquê dessa paixão. Talvez resida no misancene da xícara bonita, do pires florido ou com abstrações. Entretanto, não havia pires de porcelana na rotina da garota órfã. Talvez seja influência do livro Alice através do espelho ou da Coleção Vovô Felício. Personagens que tomavam chá com biscoitos amanteigados à mesa bem posta, elegante. Ou de algum filme da sessão da tarde que ela não se lembra mais. Porém aprendeu a gostar de chá. Não é comum entre os goianos, que preferem café e não perdem tempo com rapapés. A mãe comprava chá-mate por que ela gostava ou ela gostava por que a mãe comprava o mate Leão da caixinha laranja? Às vezes a mãe trazia um da caixa quadrada vermelha: tender leaf , "o único de saquinho", dizia a propagand

Cobogó

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Night Windows by Edward Hopper Olha os eflúvios do vulcão! Assim Tomás me chamou atenção para olhar o que estava atrás, a paisagem espirrando fogo num cenário meio Marte, meio Terra. Era bonito. Depois, acordei sonolenta dentro de uma grande cabine de um saveiro, de uma corveta, sei lá, não entendo de barcos, mas caminhei cambaleante até a amurada e vi que estava “descendo o rio Nilo, amor de crocodilo”... Bernardo conversava animadamente numa roda com outras pessoas, ali na proa, provavelmente discutindo Ciência e a eficácia ou não das medidas de isolamento contra a covid-19. Acordei mareada, sem saber se ainda estava dormindo. Nos EUA, levei umas três semanas para despertar sem dúvida de que estava, de fato, vivendo em outro país. Hoje foi a mesma sensação. Estou aqui ou não estou? É real ou não? Eflúvios com certeza é palavra que adolescente só falaria em sonho.  A família Walkers, como apelidou uma amiga, que já havia programado Semana Santa com procissão do foga

Quarentena ao quadrado

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Fiz questão de andar no meio da rua. Não foi uma metáfora. Pisei as linhas pontilhadas que separam a mão da contramão. De propósito, contrariei o sentido do relógio. Tomei de assalto a quadra como se a rua fosse minha eu pudesse ladrilhar com pedrinhas de brilhantes.  A lua foi testemunha de que olhei para ela. "E você passa de noite e sempre vê apartamentos acesos Tudo parece ser tão real Mas você viu esse filme também". A noite é quente, não parece outono, mas faz  inverno nas almas.  Capto uma música de Natal de uma das janelas. Os choros dos bebês são estridentes. Quantos nenéns encerrados, enlouquecendo os pais.  Há gritos de brincadeiras e de conversas entrecortadas: "Ibaneis estendeu a quarentena até o dia 13 de abril". Risadas, rock and roll, há também. Inspiro e expiro a liberdade controlada.

Lusco-fusco

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Tropeço nas sombras.  A dama da noite não espera o breu para exalar o perfume lépido pela onda eletromagnética. A canção também pega o sendero invisível e salta da janela. Alcança os poucos que se movem no lusco-fusco cá embaixo. Não são dezenove horas, mas as ruas estão mortas. Enterrou-se a paz de espírito. Enlutados estamos. Viril, o badalo do templo resgata a antiga importância do mundo sem pneus. Apreciamos a lua riscada e a candura da cidade: mais poética ao abandono da estática geometria.