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Mostrando postagens de junho, 2022

Parábola

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Avulsa estou. Sou? Mães devem se preparar para o hiato da inutilidade existencial ao qual são lançadas no processo de amadurecimento dos filhos. Quem gosta tanto do artigo definido precisa caminhar na penumbra dos pronomes genéricos. A mãe se torna alguém ou ninguém ao sabor da indiferença de quem lhe consumiu a maior parte da juventude, a genuína preocupação e o amor condicionado por anos de cuidados, de afagos e de mãozinhas sôfregas pelo contato maternal. É a suprema readaptação que se impõe novamente. Primeiro, a de parir, nutrir e proteger. Anos depois, a de soltar, confiar e assumir aquela pontinha no filme dos rebentos, quiçá uma participação especial. O ninho vazio é antes mais emocional do que físico. Nada na vida da mulher é superficial. Menstruamos, optamos todos os meses entre o dever e o direito de ser livre. Investimos toneladas de energia e incalculáveis horas na prisão voluntária da maternidade (quando ela é uma escolha também não deixa de ser um fardo). E no momento de

Cavaleiros (e amazonas) andantes

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                                                                                                                             "Nunca morri nos dias da minha vida".                                                                                                                                                                                     (Cervantes) Dom Quixotes são necessários neste mundo-cāo. Moinhos de vento são as utopias a nos relembrar a capacidade humana para a perfeição. Aqueles que batalham pelos sonhos de um planeta melhor merecem nossa reverência, ao menos ela. Jamais trocemos dos ideais iluminados, dos poetas cotidianos. Ao contrário: unamo-nos a eles, ao menos em teoria, ao menos neste texto. Enquanto pinto as unhas de rubi imperial, os cavaleiros (e as amazonas) andantes estão protestando em frente ao parlamento, debatendo educação, morrendo pela floresta. Quem sou eu para julgá-los, desdenhá-los? O oposto: saúdo-os! Eles ficam em carne viva por uma sociedade

Evoé, velhos artistas!

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O que vamos fazer sem a certeza de que eles apareçam com uma nova obra-prima no raiar de um dia nublado? Já caminham para as oito décadas de andanças neste mundo, o mais espantoso, nesse país onde não se dá muita guarida aos poetas. Chico, Caetano, Milton, Paul, Paulinho, Gil, Rita, das fitas gravadas da minha irmã mais velha. Infinitas reinvenções de si mesmos, fênix(es) da originalidade, cupidos sempre hábeis em nos fazer (re)apaixonar pela beleza do Brasil fodido, estropiado, falido. Renato surgiria 40 anos depois e já se foi. Deixou uma legião de súditos saudosos de acreditar na revolução dos jovens. Entretanto, essa garotada de 80 é que efervesce; segue quatro décadas adiante do próprio tempo. Cantam e decantam o maldito país das atrocidades, paralisado num relógio sem corda que não ata nem desata, emperrado no futuro do pretérito. Mas se a sina da nação é repetir o passado, a deles é a de nunca nos enfadar a cada verso. E se a sociedade retrocede, eles avançam na provocação, recr

Delírios e Desolações

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Delírios e desolações simultâneos O país na lona e o coração sangra cicatriza sangra cicatriza sangra entre o terror e o abismo. Um dia o músculo esgarça sem direito à sutura. “o que mais importa é quão bem você caminha pelo fogo”. O gosto pronunciado do conhaque no palato traduz com exatidão a virilidade etílica de Bukowski. A camada de chantilly sobre o chocolate quente representa a volatilidade de suas urgências, a fragilidade de sua solidão. Era ou não um bruto sentimental? Carnal nos vícios, áspero nas letras, etéreo nas utopias. Bukowski: bebida no cardápio do sebo. Quantos exemplares haveria ali da bendita poesia visceral do maldito escritor americano? Quantas mulheres pagariam para ter um pouquinho de Bukowski dentro de si? Henry: intelectual Chaaaarrrles: lascivo Bukowski: pornográfico O obsceno senhor B. ovo virado mau olhado enfado banzo mal humorado.  Do país sem lume, azedume. Bitcoins,  garimpos, coaches criptomoeda decrépita. Cripta a retumbar  desvarios de grandeza na

Juno

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1º de Junho Hoje não vou passar horas tentando lhe encontrar para lhe dar os parabéns. Hoje não vou ouvir: batuta? E receber o apertado aperto de suas mãos calosas. Hoje não vou lhe ver com o bat chapéu meio amassado, surrado. E aquela cara de sonso, olhos moles como os meus, peixe-morto. Você está morto. Às vezes penso que não. Que foi pescar lá para os confins da represa. Que se embrenhou no cadiquim de cerrado nativo que sobrou na fazenda onde passou a adolescência na minha infância. Você varava os corpos das caranguejeiras como se as estudasse. Depois veio a fase de caçar codornas, os perdigueiros, a simbiose com a casa do morro, cada dia mais rural, ogro, diáfano. É por isso que é bom achar que você ainda está lá, vagando pelos ermos como um curupira a zelar pelo que ainda resta de selvagem em nós. Hoje pela manhã assisti a alguns minutos das quartas de final de Roland Garros, só para que você conferisse, pelos meus olhos, o esporte que tantas vezes vimos juntos, que você me ensin

Babando na Babel

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"eu sou do camarão ensopadinho com chuchu" No Gabão, receita boa e popular é o bacalhau desfiado com cenoura, acompanhado por arroz branquinho e banana cozida em rodelas. Não tinha a menor ideia de que se comia bacalhau no Gabão. Descobri ao conferir a feira cultural das embaixadas. Morar na capital do país tem dessas vantagens: é possível dar a volta ao mundo sem sair do cerrado. Delicinha o prosaico prato típico dos gaboneses, cidadãos que falam francês, mas cultuam o bacalhau como os portugueses. Eu me derreto fácil pelas comidinhas bestas. Bacalhau, discordarão, não é ovo. Aqui, não, mas lá no Gabão deve ser, oras. Além disso, o ovo, para mim, está no topo da cadeia alimentar. Todavia, quem tem paladar diferenciado vai torcer o nariz para um guisado tão simplório feito a partir de um peixe tão nobre. Humm, gostoso, né? “O melhor preparo do bacalhau ainda é a Gomes de Sá”, proferiu o marido metido a Jacquin. Entretanto, nada diminuía a minha experiência gastronômica exclam