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Mostrando postagens de fevereiro, 2020

Pitacos sobre os Pitecos

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Não é de hoje que observo o comportamento andarilho dos homens. Talvez por ter recebido da biologia a missão de criar dois meninos. Nunca fui especificamente uma princesa, mas sempre gostei de brincar de boneca e de casinha. Ao mesmo tempo, não abria mão das atividades cheias de energia comuns aos meninos, como subir em árvores, montar a cavalo, pedalar e participar das brincadeiras de rua: polícia e ladrão e toda sorte de piques. Mas esse particular do caminhar solitário e errático masculino é algo que hoje me chama mais a atenção e me intriga. Seria algo intrínseco ao DNA XY ou atitude estimulada pela criação. Aos homens se comanda: vá! Ganhe o mundo! Corra! Se vire! Não tenha medo! Às mulheres, geralmente, os apelos são ao inverso: Cuidado! Não saia sozinha! Vai se machucar! Isso não é coisa de menina! Ai do guri que gosta de ficar em casa e da garota que aprecia desbravar as trincheiras da própria cidade, que dirá, do planeta. Cedinho, na manhã que principiava, teste

Alinhavamentos

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Armarinho. Acho estranha essa palavra para definir as lojas do ramo. Deve mesmo se originar dos pequenos armários ou estantes onde eram guardados os materiais miúdos como linhas, botões, agulhas etc., nas antigas casas onde sempre havia uma sala de costura na qual as mulheres pintavam e bordavam (literal e metaforicamente, pois não se enganem: as pessoas do gênero XX nunca foram 100% bobinhas). Sem dúvida é um lugar fascinante o tal armarinho. Estão para as mulheres como as lojas de ferragens estão para os homens. A atração do mulherio é grande por todas aquelas miudezas: fitas de cores e larguras abundantes; botões de infinitas utilidades; zíperes (lembrei da amiga que gosta dessa palavra); rendas, ilhoses (outra palavra incrível não?); extensores para sutiãs, novelos e demais bugigangas que podem ir de fantasias de carnaval e derivados (lantejoulas - mais uma palavra divertida - penas, plumas, purpurinas) aos cortes de tecidos. Eu que nunca costurei nem uma barra seq

Urdidura

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"mas a vida é real e de viés"... (Caetano Veloso Na bat costureira que faz os consertos das minhas roupas, sou toda ouvidos. Dona Maura gosta de desabafar. Ela não tem muito espaço para conversar com alguém, penso eu. Marido ogro, duas filhas que passam o dia em empregos mal remunerados. Aliás, uma delas arrumou uma gravidez fora de hora e agora o neto também fica por conta da costureira.  Tenho pena. Ela trabalha bastante para sustentar todos. O marido antipático e machista está desempregado. O neto acabou de conseguir vaga numa creche, metade paga pelo governo, metade paga por ela.  - O serviço deu uma baixada. Se meu marido não tivesse tirando as férias de um porteiro aqui perto, não sei como eu pagaria o aluguel.  Tentei animá-la um pouco: - Quem sabe não é o Carnaval... - Carnaval tem todo ano, não é isso não. Sei lá o que está acontecendo. - O país está parado, dona Maura. Com esse governo maluco, não poderia ser diferente. De fa

Pontilhismo

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A chuva fina lança uma camada de verniz sobre os objetos da rua. O asfalto ganha uma lâmina resplandecente. A cor nos bancos de praça se realça. O chão de concreto das calçadas e das quadras esportivas é salpicado pelos pingos d’água, uma verdadeira aula de pontilhismo. A Natureza haveria ensinado Signac e Seraut a pintar? Já nas folhagens, as gotas não se desfazem formando pinturas ou pátinas. Orvalho, bolhas diminutas cobrem o manto verde do gramado, das copas das árvores. A vegetação é tela sutil, não dura e estéril como as interferências humanas na paisagem. A água pousa, não se dilui. Não há choque, há contato. O líquido é absorvido aos poucos ou vai embora pela ação do sol. Meus olhos, mais lúdicos do que científicos, observou o comportamento da calma chuva de verão ao cair sobre mim. Se ela, tranquila, já mostra diferença brutal entre tocar a concretude de avenidas e de calçadas e alcançar a cobertura vegetal, imagina quando se enfurece? O caos urbano prov

Tempestade perfeita

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  Na hora do ângelus, todos os anjos estavam abrigados sobre as nuvens, mas isso não impediu que suas asas pendessem encharcadas pela chuva que escondeu o pôr do sol. Tudo ficou entre o chumbo e o verde-escuro.  Ela ia à missa numa noite de quarta. Dirigia com parcimônia, apaixonada pelo céu temperamental. Um raio caiu ao longe, à direita, porém o trovão ressoou nas proximidades da curva acentuada. O motorista do carro da frente se assustou com o estrondo e deu uma pequena guinada com o volante. Nesse momento retumbante, a rádio começou a tocar: That's me in the corner That's me in the spotlight Losing my religion Trying to keep up with you And I don't know if I can do it Oh no, I've said too much I haven't said enough Perfect timing, pensou sorrindo. Refletiu que nunca teve de fato um religião. Portanto, não poderia perder nada como fala a música, uma de suas favoritas. Chegou à histórica e singela igreja de Nossa Senhora do Rosário

1° de fevereiro

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Nunca havia ouvido Spice Girls para caminhar. Aliás, tirando os sucessos das rádios, não conhecia a maior parte da canções. Ótima companhia. Me senti a própria cheer líder agitando meus pompons (ou melões) pelo calçamento. A garoa era fina e mantinha meu corpo resfriado com uma película diáfana. O verão outonal de Brasília é adorável.  Havia uma árvore arriada no meio do caminho, onde o beija-flor não precisou gastar muita energia (ao contrário de mim) para colher seu néctar do dia. Havia guarda-chuvas de várias estampas e um cachorro de capa de chuva. E nas primeiras fotos da igrejinha de 2020 havia um casal de noivos em fina estampa. Não tive coragem de tirar uma foto na ida, mas na volta, encarei. Não me permito me arrepender do que não fiz. Já me basta o curso de Antropologia abandonado.  Aproximei-me da entrada da nave e como uma turista desavisada disparei os cliques. Percebi que a noiva estava de all star. De longe me parecera um tênis de corrida.  Havi

Estridente

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Sextou, e eu, devota das sextas cujos filhos nasceram numa sexta, fico contente. Ainda mais quando o dia é frio e você liberta aquele casaquinho bacana do armário, tadinho, sempre tão preso nessa capital cada dia mais intolerável de calor e de presenças indesejáveis nos palácios, construídos para representar a grandeza de uma nação do futuro que, bizarramente, caminha para o pretérito perfeito em sua ignomínia. “Você está parecendo uma cubana de Sierra Maestra”, comentou o marido. Eu me sentindo toda prosa que estaria honrando os povos originários andinos, lá onde eu me encontrei como alma ancestral. OK, é tudo sangue latino e revolucionário. Tá valendo. Só assim para suportar o retrocesso civilizatório que vivemos no Brasil. O viés ideológico de esquerda (que nunca foi totalitário aqui) não pode. Mas o de extrema-direita, com recolhimento de livros, ataques aos terreiros de religiões de matriz africana, odes a torturadores e ditadores e desprezo para com os portadores d

Nonsense on the road

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[09:14] Boa Vista do Cadeado será uma cidade na qual todos espiam pelo buraco da fechadura? [09:33] Em Pelotas , sofre-se mais de prisão de ventre? [09:35] Em Porto Alegre não há adeus? [10:11] Tio Hugo seria um pedófilo que não merecia nomear cidade nenhuma? [10:19] Em Espumoso se vende mais sabão em pó? [10:20] Tapera estaria em eterna decadência? [10:23] Fortaleza dos Valos haveria ganhado quantas batalhas? [10:41] Não-Me-Toque está em terapia coletiva. [11:00] Mormaço sua em bicas como eu. [11:12] Em Sanga Profunda se pratica yoga com escafandro. [11:43] Em Paraí é proibido seguir. [11;57]~Ela ensaiou Três Passos e deu um salto gigante para a humanidade. [12:02] Casca , terra de desmiolados. [13:20] Em Cascalho Rico  sempre haverá uma pedra no meio do caminho.  [14:00] Em Matemático , multiplica-se mais do que divide-se?

Deserto Verde

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De Catalão/GO à Cristalina, a próxima cidade às margens da rodovia 040, é só uma imensidão plana sem vida.  Hello, darkness, my old friend . É uma paisagem que, a despeito da limpidez do céu e do verde intensivo das monoculturas, nos provoca o oco da desolação.  Nosso meio-oeste americano, pintura de Hopper. Dorothy ansiando pelo tornado que a leve para longe do plano infinito. Quando chove, o horizonte se confunde com o asfalto e o caminho se transmuta em paralela que despenca no vazio do além.  Nesses ermos sem verdades e sem veredas é fácil pensar que a terra é chata, um disco girando perene sobre o próprio eixo.  A música, cantilena, ladainha ou oração não difere da monotonia circular. Entoa monocórdica rimas sobre a insignificância dos torpes.