A proximidade entre nós

Abrir nossa disposição para conversar com pessoas que vivem realidades totalmente diferentes da nossa é um passatempo cultural de grande envergadura. Você nunca sai menor do que entrou, pode acreditar. Não é à toa que taxistas, empregadas domésticas, garçons, amas e outros profissionais do “décimo escalão” sejam personagens tão caros para a literatura e a dramaturgia. De seus relatos, sempre é possível extrair preciosidades.

Acabo de me lembrar do belo e triste (combinação sine qua non dos bons romances indianos) livro “A distância entre nós”. Recomendo, com uma caixa de lenços de papel à mão, a história do relacionamento entre a patroa e a empregada - ou seria mucama? - da família.

Mas não é preciso recorrer à ficção para ouvir a voz de quem parece invisível. Basta que você se disponha a papear com essas pessoas que lhe rodeiam. O relacionamento não precisa acontecer paralelamente. Deixe rolar um cruzamento. Aproveite.

Há alguns meses, fui visitar uma das minhas melhores amigas. Ela não estava. Resolvi esperar, não sentada no sofá da sala folheando revista como madame, mas metida no banheiro onde a empregada dava banho na menina. Puxei conversa. Mais tarde, comentei com a minha amiga que a filha da empregada queria fazer vestibular para arquitetura. “Ela desenha bem”, me disse a mãe. Surpreendida, minha amiga retrucou: “Mas a Vanda nunca me disse nada disso”.

Sei que minha amiga não é superficial, do tipo que trata os outros com desprezo ou indiferença. Talvez tenha apenas faltado a oportunidade, na loucura da rotina, de parar para jogar conversa fora com a empregada. Como eu estava ali, pronta para ouvir, Vanda deve ter se sentido menos intimidada a se expor. Pobre também tem sonho, é claro. Pobre também quer ser ouvido. “E tem depressão”, como certa feita pontuou uma das minhas colegas de trabalho.

Dia desses, entabulei prosa com a massagista. Estávamos falando de cansaço, labuta, essas coisas. Engrenamos num papo sobre ônibus e horários. Tentei mostrar minha intimidade com aquela realidade de pegar ônibus lotado e cair apagada babando no ombro do passageiro ao lado. Eu já vivi isso um dia. Era a intersecção entre dois mundos tão díspares.

De repente, ela já estava falando do tio dela que tem passe livre no transporte público por ser idoso (e pode escolher um acompanhante tarifa free) - e que por isso ela não paga passagem -, que já dá o preço do almoço, que esse tio é flanelinha profissional, cadastrado, “faturando das pessoas que têm dinheiro para almoçar, num restaurante caro como o Roma, até 100 reais por dia”.

Sem pudor algum, ela disparou que o tal tio manca de uma perna, mas quando se aproxima do ponto de flanelagem “manca pra valer”. E sempre está de bermuda para que “todo mundo veja a operação que fez no joelho”.

O tio pilantra oficializado (quem criou o cadastrado da “profissão” de guardador de carros estava clamando por essa malandragem) da massagista recebe aposentadoria em torno de 800 reais, tem casa própria e vive apenas com a mulher, sem filhos pequenos para dar de comer. Segundo a sobrinha, anda com um bolo de dinheiro no bolso para cima e para baixo e agora está fazendo muro novo na casa e já trocou a cerâmica do chão da sala.

Pobre também mente, inventa e finge, é claro. Corrompe e é corrompido pelo sistema como todo mundo, porém, talvez, com alguma legitimidade. Os lapsos éticos entre nós e eles são bem menores do que deixa transparecer a nossa dissimulada conivência (ou seria conveniência?) E me surge na cabeça um filme brasileiro - dos melhores que já vi na vida - que diz muito sobre tudo isso: “Dezesseis, zero, sessenta”. Mas falar dele já é pano para outros textos.



Comentários

  1. Sempre admirei o seu dom para puxar um papo, mesmo com quem você conhece pela primeira vez... ou mesmo de quebrar um clima de silêncio, quando há tímidos na rodinha, feito eu...rs... é bom sim, é vida, é interação... de uma conversa despretensiosa, de onde menos se espera, podemos sair diferentes nessa troca de pensamentos. Com certeza você conquista essas pessoas, as surpreende com seu interesse verdadeiro... Todos nós precisamos de atenção...

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  2. Dezesseis, zero, sessenta? Uau, que surpresa. Nunca vi, ouvi, ou "li", ninguém falar a respeito. Sempre que ia à Videolocadora nos confrontávamos em verdadeiros duelos, mas por fim não me deixava por vencido. Na próxima vez que o vir, vou pegar esse filme de jeito. Nada que uma boa conversa entre distantes não resolva problemas de hesitantes conquistados.

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  3. Oi Lulu,

    você por aqui, obrigada!! Pois é, ninguém conhece esse filme além de você,eu e o Bernardo.;) Mas foi uma das melhores experiências cinematográficas da minha vida. Ponto. Independente de nacionalidade. Queria encontrá-lo em dvd para rever ou comprar para algumas pessoas. Seria salutar.:)

    Um beijão e não se perca na neve!!!

    Lulu2

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  4. Isso de querer lucrar em cima de tragédias pessoais (reais ou não) me faz lembrar um livro que me marcou profundamente: "Um delicado equilíbrio", de um escritor indiano (olha aí a coincidência) chamado Rohinton Mistry. Poucos livros me afetaram tanto quando este. Acho que você gostaria também, Lulu. Taí uma dica de leitura para os meses da reforma (se é que você vai conseguir ler alguma coisa nesse período agitado!) Besos, Débora

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