Ofícios da pãeternidade

Eram 9 horas da noite e estávamos vagando por um dos lugares mais ermos do Plano Piloto. Brasília é assim: uma cidade que cresceu desmedidamente, mas que ainda guarda amplidões e vazios bem nas asas do avião. Um desses recantos não fica nem pouco aprazível no meio da noite. Mas é lá que estão, em regime de plantão 24 horas, quatro ou cinco hospitais veterinários.

Foi a minha primeira vez e a primeira vez sempre tem suas descobertas. De caixinha de sorvete Kibon em punho, carregando um dos hamsters dos meus filhos, buscávamos socorro para o bichinho, que apareceu com um machucado muito feio perto da patinha traseira. Tomás já havia nos alertado que o Bob (ou será o Dumbo? Os dois quase idênticos, gêmeos que sempre nos confundem) estava com uma ferida. Na correria, não prestamos atenção. Foi só ontem que percebi que da casinha deles exalava um odor desagradável, longe de ser apenas de xixi e cocô.

Aterrorizada, senti que o mau cheiro vinha do bichinho acabrunhado no canto. Meu Deus, o coitado estava apodrecendo em vida!! Tentando dominar o asco de alguém que não gosta de bichos e que não quer intimidade com eles saudáveis, quiçá doentes, tirei o "coiso" da gaiola, coloquei numa caixa de sapatos e tentei observar o machucado. Sem saber o que fazer, saquei a rifocina do armário dos meninos e borrifei no rato. Deixei BobDumbo devidamente encharcado do líquido vermelho que promete esterelizar e cicatrizar machucados de crianças. E agora, e se ele se intoxicar e morrer? Remédio de gente serve pra hamster?

Se pelo menos a minha irmã Vanja estivesse ali... Ela sim, uma veterinária nata, mesmo sem formação acadêmica. Pronta para curar qualquer ferida purulenta sem vontade de vomitar. Mas ela não estava e eu passei o resto da tarde à espera do Bernardo. Era preciso resolver esse assunto. De 15 em 15 minutos eu dava uma espiada no ratinho. Ufa, ainda vive. Ainda fede. Levei um pouco de água, dei uma alface... De repente eu estava ali, de mãe cuidadora daquele quadrúpede. Mas só de pensar na tristeza dos meus filhos ao perder o bichano, dominava o horror e não arredava pé. Zelosa.

Bernardo chegou e a gente partiu para os ermos dos fins da Asa Sul (ou será começo?) Aqui em Brasília também é assim: tem gente que chama o começo de fim e o fim de começo. Cidade planejada com avião e quadra, letra e bloco, só pode causar muita atrapalhação. Devidamente fedido e acomodado na tal caixa de sorvete Kibon - com furos feitos à faca para respiração - , zunimos rumo ao veterinário. "Abra bem essas janelas que esse cheiro está insuportável!"

Mas encontrar um veterinário que examine um hamster é complicado. Donos aflitos de cãezinhos e gatos aguardam na recepção. São quatro hospitais de plantão, um ao lado do outro, bem a cara de Brasília, dividida em setores disso, daquilo e de algo mais. Ninguém para atender um ratinho ferido... Passam para a gente o telefone de uma veterinária especializada em animais silvestres. Descubro, então, que meus filhos têm um animal silvestre em casa. Ela me crava de perguntas. "Mas, gente, é só um rato!!!! Tá, bom, mas é o rato do seu filho, paciência.

"Se não atenderem esse bicho hoje, vou soltá-lo aqui nesse mato e dizer para o Tomás que o Dumbo (ou o Bob) teve que ficar no veterinário porque estava brigando muito com o irmão". Nossa, aquilo doeu em mim. Tadinho, largar o bicho ferido para morrer à mingua... Nunca me liguei em animais de estimação, mas também nunca consegui maltratar nenhum bicho (que bom, um item a menos nos sintomas de psicopatia).

Enfim, no último hospital, uma veterinária com cara de garota, cabelos lisos e longos, se propôs a examinar o rato. Abriu a caixa Kibon com desenvoltura, pegou o bicho fedido com maestria e deixou o hamster passear pelo seu braço, colo... Vocação é vocação. Aprendida a lição. Enquanto eu me mantinha a uma distância segura do fedor e da aproximação, a veterinária virava o Bob ou Dumbo para lá, para cá, com carinho e sapiência. "Eles costumam se machucar muito com as próprias unhas. Deve ter sido o caso. Só que infeccionou. Não parece machucado de briga".

A veterinária limpou o ferimento e aplicou uma dose de antiinflamatório. O bicho nem grunhiu. "Eles também costumam ter carcinomas, é comum em hamsters e chinchilas. Se for só um machucado, em dois dias ele estará bem. Se for um carcinoma, não tem jeito...".

Oitenta reais e pais exaustos. DumboBob voltou para casa vivo e, quem sabe, curado. Mamãe e papai com a consciência tranquila de que fizeram tudo o que podiam pelo objeto do afeto dos filhos. Ossos do ofício da "pãeternidade".

Comentários

  1. Impressionante mesmo o que fazemos pelos nossos filhos. Deve haver alguma coisa mais profunda do que mera preservação da espécie nessa história... A biologia sozinha não explica tanta dedicação e tanta capacidade pra se enfiar nas maiores furadas só pra que eles não percebam o buraco!
    Esses dias fiquei eu durante uma semana inventando e montando uma fantasia de cabrito (porque não podia ser de carneiro, que é bem mais fácil) para uma pecinha do Fredê na escola. Não é tão doído nem tão nojento quanto curar uma ferida num hamster, aliás, é bem divertido, mas ao final do "design", eu estava exausta de tanto procurar elementos para que ele se parecesse efetivamente com um cabrito e não com um carneiro...
    Filhos, filhos, filhos...
    Um beijo e melhoras ao DumboBob,
    Ana

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  2. Todos nós sabemos que nesses momentos de aflição não conseguimos pensar friamente. E fria é a dica que te dou: http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-170442437-hamster-chines-_JM

    Uma solução cruel sim, mas muito mais prática e econômica.
    Como você mesma disse: esses bichos são todos iguais.
    Tomás e Rômulo nem notariam a diferença.

    Tomara que não haja uma próxima vez, mas, se houver, pense nisso.

    Valdeir Jr

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  3. Sinto muito lhe dizer mas tenho uma lista de hamsters falecidos que conosco conviveram: Matilde,esposa de Jojoca (que faleceu primeiro que o marido), Coquinha (esposa substituta),os filhos Bitelinha, Bitelão... todos mortos. Fora os peixinhos, o Beto I, o Beto II, o Beto III...

    Snif!

    Beijos
    Patty

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  4. Amiga Lu, com esse coração condoído pelo DumBob, prepare-se para o seu cachorrinho com os olhinhos da donaLu, apaixonado pela donaLu, carente de donaLu, enfim, louco por Lee ;). E você por ele. Vou te dar uma força e vou adorá-lo também.

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  5. O hamster está bem? Pelos cuidados recebidos com rifocina, antiflamatório da verterinária ele deve estar dando cambalhotas. Bjus. Davide

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  6. Caros amigos comentaristas,

    BobDumbo ainda vive. Manca um pouco, treme um pouco (observação do Tomás), mas parece que está melhor. O fedor também parece que está menor, o que é um ótimo sinal.

    Sei o quanto esses bichinhos são frágeis, pois os meninos já tiveram o Tetê, que morreu depois de 1 aninho lá em casa. Foi pro céu na mesma semana que a minha mãe. E foi enterrado no pé da "árvore da vovóDindinha", o novo cemitério da família.:)

    Abreijos e obrigada pelo carinho e participação,

    Lulupisces

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