Entre o sabiá e a pega




A ossatura da clavícula abre dois pontos para a cavidade do pescoço onde se esconde a tireoide. Entretanto, os dois ossinhos se divisam a olho nu. Demarcam com precisão o melhor local para o camafeu, a medalha da madona ou do santo de devoção. Há quem goste de corações e crucifixos colados à pele. 

Gosto de gargantilhas, palavra engraçada - ou seria feia - que vem do castelhano: gargantilla, diminutivo de garganta. O espanhol sempre literal nem sempre é suave. Rompecabezas que o diga!

Em inglês tampouco é sutil: choker, explicita a conotação de práticas sexuais arriscadas. Divago enquanto constato que apenas o meu pescoço pode ser diáfano como o da bailarina. É fino e ligeiramente comprido, ainda sem aspecto de tartaruga-marinha. 

Por isso me apraz essa região do corpo. Lembra-me uma das cenas mais sensuais do cinema, aquela do O Paciente Inglês, quando ele afirma que o ponto predileto da amante a desvendar é o pequeno declínio pouco abaixo do pescoço, próximo ao peito.

Kristin Scott Thomas tão linda nessa narrativa. Para mim, ela sempre foi um colosso de charme!
Ralph Fiennes também estava convidativo ao lado dela. Hoje tá meio acabadão. Kristin envelhece bela, mas os papéis, sabemos, escasseiam à medida que as rugas abundam. 

Falando em fartura, sinto que perco os cabelos. Atravessa-se a juventude inteira com uma juba agreste para, na maturidade, vê-la domada pela mesma ordem natural que antes a rebelava.

As pequenas gargantas talvez sejam o último grito de irreverência contra a irredutível decadência. O viço é um camafeu, o doce, a se esgotar a cada mordida. 

Idealizava a anciã sabiá. Materializa-se a pega. 

Admito: a velhice só é revigorante nas outras.


Comentários

  1. Que texto maravilhoso, minha xará escritora querida! Melhor do que o bombom-pretexto.

    Luciana Barreto

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  2. Belo texto, bem construído, também adoro reflexões sobre o pescoço, região de muitos sintomas emocionais e canal de expressão para o mundo.

    Raíza Barros Figueredo

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  3. Risos... Comia esse doce na doceria Docinho. Adorava. O filme também gosto muito. Tive um namorado parecido com o Ralph Fiennes. Era ciclista profissional.

    Re Osório

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  4. Como sempre MARAVILHOSO!!! HJ no meu nobre, estou fazendo uma consulta!!! Kkkkkk a idade é assim!!!!!!

    Da sua fã n. 1

    Anna Gabis

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  5. Muito bom, garotinha, achei seu texto com muito estilo e elegância!

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  6. É verdade, a velhice só é revigorante nas outras! KKK! Eu que o diga!

    Ambrosina Militão

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  7. Bom bom Lulupisces!
    Adoro seus textos!
    Envelhecer não é fácil, já dizia minha mãe! Mas a gente vai seguindo o curso, dia após dia! Não é mesmo! Aprendendo e (se) surpreendendo!
    Maravilha! Continue a nos brindar com essas divagações tão singelas!
    Sua fã Ana!

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  8. Muito bom, Luciana!

    Sarah

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  9. Diferente de você, cara Lu, meu pescoço lembra o de uma tartaruga-marinha velha e gorda! Já meus cabelos, perderam tão somente o belo tom castanho avermelhado. Ainda porto sobre os ombros uma farta cabeleira cinza prateada que mantém o mesmo viço de outrora.

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  10. Adorei, minha grande amiga. Muito agradecida e lisonjeada por receber da grande escritora maravilhosos e sábios textos.

    Mabel

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  11. Bem, esse texto é pra comer! Delicioso.

    Clarice Veras

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  12. Muito, mas muito bom mesmo!

    Renata Assumpção

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  13. ahhhhhhh eu adorei!! Mas o ocaso que você descreve está muito longe de ser real. Há muita beleza, sensualidade e esplendor nesta maturidade! Além do estilo e elegância.
    Vou te emprestar meus olhos...
    vou até assistir o paciente inglês de novo!! E cantar cheek to cheek.

    Bianca Duqueviz

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  14. Maravilhoso, Lu!!!! Deu fome(s) explico de: moer esse docinho que amo e tesão, pescoço minha área erógena. Rs. E o Ralph Fiennes, amo!!!

    Cynthia Chaib

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  15. Maravilhoso, Lu!

    Maria de Fátima Venceslau

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  16. Como sempre, ótimo e bem humorado o seu texto, hermana Lú!
    Por falar em pescoço de tartaruga, estou eu a me convencer a aceitá-lo como parte inseparável e inadiável de meu envelhecer saudável...
    A flacidez do tão amado e elegante pescoço e tbm, o inevitável código de barras, agora uma moldura indesejável e nada estética sobre meus lábios, que, linha após linha, insiste em se estabelecer...
    Envelhecer sem neuras é afastar-se cada vez mais de espelhos indiscretos e se apegar à outros valores e beleza que não se equiparem aos de sua juventude, pois são irrecuperáveis e porque não, desnecessários...
    A natureza é sábia, pois tbm nos tira aos poucos a acuidade visual.
    Ver mais a alma do que o corpo. Priorizar a calma do que a pressa, que nos faz perder detalhes preciosos...
    A saúde e bem estar do que a juventude e sofreguidão...
    Bjs e ótimo final de semana.

    Marilena Holanda

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