Atonia





Ao caminhar sozinha pelas calçadas arborizadas da Asa Sul, sinto um pouco da antiga (já soa milenar) liberdade no rosto. Ainda mais nesse inverno surreal, especialmente frio, silencioso e sombrio.

Afirma o documento do hospital que nasci às 18h do dia 21 de fevereiro de 1971. Vinha ao mundo uma anjinha atribulada na hora do ângelus. De lá até hoje, honro o fim da tarde com devida vênia. Sintonia e inspiração elevadas.

É o momento do dia no qual sinto mais sono também. Quiçá a vontade inconsciente de voltar ao útero; de me recolher num espaço de proteção.

Gosto de me exercitar nas manhãs, entretanto o horário de trabalho me obrigou à atividade física nas bênçãos do pôr-do-sol. Venho me acostumando a contemplar os últimos lampejos de claridade enquanto ouço música e inflo a máscara.

Recordo da infância um teste pulmonar que consistia em soprar uma espécie de sanfona por meio de uma mangueira. Alguém aí se lembra disso? Eu nunca ia bem. A sanfoninha se expandia em uma ou duas dobras, não alcançava nem a metade da capacidade.

Agora posso até correr mascarada. É chato pacas, mas não é o fim do mundo. Aliás, é o fim da picada, só que não tem outro jeito.

A marca solar se despede das paredes das lojas, das fachadas dos edifícios residenciais e das copas das árvores. Não sei como não tropeço olhando para o alto. Preciso controlar este instinto kamikaze.

Sigo a admirar os galhos implorando por chuva. Também faço o mesmo pedido, embora saiba de cor e salteado que ela não virá em agosto. Sei lá, o Brasil está tão de ponta à cabeça que pode rolar qualquer fenômeno esdrúxulo como a palavra é.

Serei melancólica por haver nascido na hora exata da melancolia? Tava ali, refletindo e arfando, sem saber qual das ações era mais complicada, quando ouço os acordes do grupo português Madredeus.

Conexão telúrica perfeita com a atmosfera de adeus do astro-rei, porém, puta desconsolo! Desacelerei. Por pouco não estanco e me deixo sangrar piscianamente indulgente.

À beira da atonia total, fui salva pelo próprio Spotify, que sacou que pegara pesado e lascou Don’t you forget about me, seguida de Follow you, Follow me, do Genesis.

Certamente o aplicativo não queria ser processado pelo alquebramento definitivo da ouvinte.





Comentários

  1. Oi Luciana!

    Acabei de ler seu texto. Também faço caminhadas todos os dias. As minhas começam as 19hrs em ponto, quando o sol ainda está presente, mas com uma intensidade menor.

    Caminho depois da janta! As vezes sozinha, as vezes com as meninas, e ultimamente, caminho com uma antiga vizinha.
    Pego a North Broadway! Olho para as árvores, os prédios, as pessoas, e os carros passando na avenida. Enfim... ô vida!
    Seu texto foi gostoso de ler... cuidado para não tropeçar, hein menina!

    Evelyn Ferris

    ResponderExcluir
  2. Eu adoro e viajo nos seus textos, amiga. E as fotos... ahhh adoro cada click.

    Mônica Torreão

    ResponderExcluir
  3. Texto muito inspirado e inspirador e clique absurdo de lindo!

    Ana Cristina de Aguiar

    ResponderExcluir
  4. Que linda!

    Débora Cronemberger

    ResponderExcluir
  5. Lindo texto, Lu! Fã super fã mesmo.

    Cynthia Chayb

    ResponderExcluir
  6. Adorei, como sempre!

    Ana Claudia Loiola

    ResponderExcluir
  7. Enquanto eu lia seu post, vc lia o meu.....risos...ambas enxergando o apelo da vida para além da paisagem., do real. Mas imagine que vendo a foto do seu post, aquela luminária me lembrou um inseto. São cores de insetos. Fiquei imaginando uma paleta de cores que poderia ir do marron-barata, passando pelo laranja-besouro até chegar no preto-escorpião. Eita! Saí da categoria insetos. Que risco! Beijo, querida!

    Re Osório

    ResponderExcluir
  8. Lindo, amiga!
    Hoje tb. sair a caminhar pelas ruas de White Plains , me despedindo, mais a cidade está triste, e eu queria tanto uma despedida alegre.

    Cecília Soares

    ResponderExcluir
  9. Adoro esse horário que você nasceu, nessa época do ano é o que mamãe chamava de lusco-fusco, é lindo o entardecer no inverno.

    Renata Assumpção

    ResponderExcluir
  10. Adorei!

    Maria Félix Fontele

    ResponderExcluir
  11. Ai que texto lindo!

    Renata Neves Gonzaga

    ResponderExcluir
  12. Muito legal Luciana.

    Só me preocupei um pouco com você, por se exercitar no entardecer do planalto central.
    Umidade baixa demais!! Nível deserto!!
    Cuidado.
    Hidrate-se bastante!

    Um beijo.

    Paulo Magno

    ResponderExcluir
  13. Olá!, eu caminho às 7hs da manhã, acompanhada de um friozinho danado, mas tranquilo. Toda equipada de máscara e viseira.
    Muito cuidado pra não tropeçar, e se cuide aí também.

    Leila Brandão

    ResponderExcluir
  14. Calma...o fim da "picada" vai chegar. O sol continuará a deixar sua marca nas calçadas e árvores....a chuva molhará os galhos secos e eles brotarão para que os vendo, Luciana se inspire e feliz escreva seus textos!

    Beijos,

    Socorro Melo

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos