Cobogó


Night Windows by Edward Hopper


Olha os eflúvios do vulcão! Assim Tomás me chamou atenção para olhar o que estava atrás, a paisagem espirrando fogo num cenário meio Marte, meio Terra. Era bonito. Depois, acordei sonolenta dentro de uma grande cabine de um saveiro, de uma corveta, sei lá, não entendo de barcos, mas caminhei cambaleante até a amurada e vi que estava “descendo o rio Nilo, amor de crocodilo”... Bernardo conversava animadamente numa roda com outras pessoas, ali na proa, provavelmente discutindo Ciência e a eficácia ou não das medidas de isolamento contra a covid-19.

Acordei mareada, sem saber se ainda estava dormindo. Nos EUA, levei umas três semanas para despertar sem dúvida de que estava, de fato, vivendo em outro país. Hoje foi a mesma sensação. Estou aqui ou não estou? É real ou não? Eflúvios com certeza é palavra que adolescente só falaria em sonho. 

A família Walkers, como apelidou uma amiga, que já havia programado Semana Santa com procissão do fogaréu em Goiás Velho e conhecer o Peru em julho, se vê num sedentarismo sem precedentes. Salve os arroubos oníricos que me levam para as outras bandas, quando Morfeu resolve ser bacana comigo.

Subo e desço cinco lances de escada como Rocky Balboa: “O mundo não é feito somente de raios de sol e arco-íris, é um lugar duro e maldoso e não importa o quanto você ache que é forte, ele sempre vai te deixar de joelhos e te deixar assim permanentemente se você permitir. Nem você nem ninguém vai bater tão forte como a vida. Mas isso não é sobre o quão forte você bate, é sobre o quão forte você aguenta ser golpeado e seguir adiante”...

Luto contra a inércia paralisante do corpo e (mais complicado) da mente, uma sacana chegada na melancolia. É parar ou correr em Brasília. Daí fujo “nas noites vazias, numa boemia sem razão de ser”. 

Minhas mãos apresentam, em progressão geométrica aos moldes do coronavírus, sinais do pugilismo diário com detergentes, água sanitária, sabonetes, facas, vassouras, buchas, papéis-toalhas, paninhos e limpadores multiuso. Ferimentos superficiais na epiderme. Escaras de cansaço nos músculos.

Ontem experimentei uma aula de balé virtual, de sutiã e calcinha à frente da janela aberta. Faz calor, seria mais apropriado o frio, nesses dias inglórios. Acho que um vizinho ficou me espiando nas sombras, pelo buraco do cobogó do prédio ao lado. Melhor para ele. Na tediosa e esterilizada quarentena do mundo Gattaca, talvez tenha feito alguém bater uma velha e pornográfica punheta.


Comentários

  1. Morri, com o final! Você não é nada previsível. Maravilhosa! Carlos, gostava de dizer qdo eu o repreendia em passar a frente da janela da área de serviço só de cueca, quem não quer ver estrela que não olhe para o céu 😂

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  2. Ai, minha amiga!!!
    Vc é uma excelente escritora , adoro ler tudo que posta . Gratidão por me enviar !
    Vcs são dicionários ambulantes e as histórias são sensacionais !
    Adoro e me divirto bastante , isso mata um pouquinho a saudade que sinto de vc !
    Paz e Bem!

    Liane

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  3. Quanta sensualidade na quarentena. Rs. Espero que o vizinho tenha aproveitado.

    Juliana Neto.

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  4. Você é hilária!

    Cynthia Chayb

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  5. Kkkk quando acho que vem uma tragédia final... balé seminua pelo cobogó???!!! Kkkk essa foi boa

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  6. Dá-lhe, Lu! Provocando eflúvios na vizinhança!

    Wainer Martins

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  7. Ótimo como sempre!

    Cecília Soares

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  8. Hahaha, eflúvios e o final, só você! E os Walkers são C!

    Ana Cristina de Aguiar

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  9. Esse é o começo da minha quarta semana em casa, e hoje ao acordar também quase não consigo distinguir sonho (pesadelo) de realidade. Torcendo pra o mundo voltar pros trilhos logo para que a gente prossiga com as andanças. Saúde para você e os seus, Lu.

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  10. Querida, você me fez ri com sua deliciosa e descontraída crônica. Obrigada.
    Você tá bem? É uma pergunta meio cretina. Como podemos dizer que estamos bem com o mundo de ponta a cabeça.
    Ontem terminei meu trabalho no final da tarde, e fui ver fotos do mar. Nessas horas a ausência dele me sufoca.

    Karla Melo

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  11. Li as duas agora, adorei. Essa quarentena está te fazendo bem, manda mais que também me faz um bem danado. Ainda mais em dias de news tão sombrias.

    Renata Assumpção

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