Edgar Allan Poe faria uma obra-prima


Premonições

Noite de tormenta. Os raios riscam a janela, enquanto admiro e me divirto. As densas árvores parecem criar vida. Os galhos, braços esqueléticos, ameaçam invadir o apartamento. No vídeo, um filme que prometia: “Premonition”. 

Adoro chuvas e trovoadas. O mistério me seduz. Trovões me dão arrepios gozosos. Acho que sou bruxa velha disfarçada de mãe pós-moderna. Brasília não é uma terra farta de noites filosóficas como essa. Aproveito. Sei que no dia seguinte o sol já vai brilhar como se precisasse ratificar todo o seu poder soberano. Mas enquanto a manhã não vem, ouço o rebimbar das gotas no parapeito. 

Termina o filme, mas o temporal persiste. É mais do que eu poderia almejar para o fim do domingo. A história na tela não rivalizou com a tempestade escura. Deixou-me mais melancólica do que aguçada. Vou para o meu quarto e encosto na janela escovando os dentes. A chuva me atrai como um ímã de possibilidades. 

Sinto que estou pronta para viver ardentemente. Visto uma renda preta. Os feitiços conectados. Ele vem e beija meu ombro. E é neste momento que percebo que estou sendo observada. Uma sombra no cobogó do quinto andar. Ao primeiro olhar, parece não ter vida. Apenas o espectro de algum objeto encostado ao tijolo vazado da área de serviço do prédio ao lado. 

Sigo escovando os dentes, mas agora em tensa câmera lenta. Meu marido ri e não crê em mim. Tem alguém ali olhando para a gente. Não, o pescoço é muito fino para ser de uma pessoa. Eu vi a estátua se movimentar. Não é inanimado. Ele desconversa e sai do campo de visão do observador sinistro. Decido não arredar pé. Os feitiços agora não são mais de lascívia e, sim, de alerta. 

“A Sentinela dos Malditos”. Esse era o filme daquele momento. Uma forma sem olhos à janela do último andar. Aqui, o elemento da arquitetura típico da capital federal, que permite a passagem de luz e ar, deixa tudo ainda mais sufocante. Um vulto recortado em quadrados. Uma silhueta que também decide permanecer e me enfrentar. 

A Sentinela dos Malditos

Ele retorna. E aí? É alguém, tenho certeza, está nos espreitando. Ele pode ver todo o nosso quarto ali de cima, não? Não, o ângulo de visão dele atinge mais o chão, perto da janela. Nessas horas nebulosas, ter um físico em casa ajuda sobremaneira. Mas não alivia o fato de que o perfil tenha roubado a minha contemplação erótica da chuva. 

De repente, o contorno permite ser flagrado em movimento. O físico se assusta um pouco e agora crê, pois comprova. Nós dois estamos presos ao provável escrutínio desse ente sobrenatural inescrupuloso. 

Dou uma trégua para tirar a pasta de dentes saturada da boca. Retorno. O perfil agora está de perfil no mesmo lugar. Eu não disse que era uma pessoa? É mesmo, você tinha razão. O fantasma não cede, nós não cedemos e muito menos a torrente lá fora. Percebo que chegamos a um impasse. E que estou desconfortavelmente devassada. Bizarro. 

Num impulso, rolo o blecaute para baixo e termino com o voyeurismo assustador. Hoje, prometo iniciar as investigações in loco. Vou te desmascarar, alma abusada! Nada como um porteiro para fornecer os detalhes sórdidos. Elementar. 




Comentários

  1. eu hein! espero que pelo menos tenha dormido bem. eu ia ficar um pouco assombrada!
    Bjs, Débora

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  2. Como é aquela expressão (ou citação)? "Olhei pro abismo e ele me olhou de volta".

    Encare o voyeur, prima. Melhor: pegue aquele mega foda binóculo do Bernardo e veja todos os poros da cara do bisbilhoteiro.

    Mas se isso render outras histórias gostosas como esse, não o incomode. Deixe como está.

    Primo Valdeir Jr.

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  3. Adorei o seu "Janela Indiscreta", deve ter sido bem melhor que o suspense com Sandra Bullock! rs
    Bjs!
    Patty

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  4. humm… mas fiquei curiosa… afinal, a renda rendeu? o suspense aguçou a fantasia depois de abaixado o blackout? ou aprisionou? lembrei de uma peça argentina em que os personagens começavam a boicotar suas próprias vidas, encenando um eterno faz-de-conta por conta do misterioso observador. era pra ser uma comédia, mas na real não tem muita graça, né? bjus

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    Respostas
    1. Cara BelBel,

      rolou nada... Estragou o clima. Mas rendeu uma historinha para o blog, melhor que nada!! KKK!!

      Beijão,

      Lulupisces.

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