Papo de balcão
Algumas tradições são boas. Não incluo nessa lista a TFP ou qualquer outra tentativa medíocre de manutenção de preconceitos. Mas algumas tradições são boas, como a de frequentar aquele bat restaurante que resistiu à sua infância e vive até hoje. Ou de levar seus filhos para um sorvete na Moka’s, a sorveteria mais antiga de Brasília. O lugar sobrevive, pequeno e discreto, no coração da 112 sul.
O sorvete, com tanto gelato italiano cremoso e suspirante por aí, parece prosaico. Mas o preço ainda é razoável e a bola farta. Desde 1980 sem mudar nada, inclusive o painel de recadinhos e cartões de apresentação caótico que fica na parede da direita.
O garoto pediu uma bola de chocolate com flocos ao dono. Um senhor esbelto que eu nunca achei particularmente simpático. Aliás, que eu sempre o tomei como um tanto rabugento. No momento em que chegávamos, um contemporâneo dele, também de cabelos brancos, se despedia. Acho que a nostalgia do papo antigo somada à aparição do meu filho fez a ranhetice do dono derreter um bocadinho.
A presença de uma criança às vezes funciona como gatilho de relaxamento, não? As defesas caem por terra. “Tira os seus óculos escuros”, ele pediu ao menino. “Esses olhos claros são de quem, do pai?” Não, da avó materna e do avô paterno, respondi. “Bonito ele, hein. Muito bonito".
Peguei a rabeira da conversa anterior e descobri, após 30 e tantos anos de Moka's, que o dono da sorveteria tinha nome: Karl Marx. Quer dizer que seu nome é Karl Marx?, xeretei. “É”, ele confirmou amargurado. “Nasci em 35, em plena Intentona Comunista e aí meu pai me marcou como se marcam os escravos.”
Aquilo me doeu porque imaginei o tanto que deve ter sido realmente complicado carregar tamanha alcunha, repleta de significados complexos.
Seu pai era mesmo um grande fã do comunismo, arrisquei, tentando, em vão, relativizar o peso daquele passado. “É, nem me fale. Eu fui demitido por isso”.
Nossa, é mesmo. A ditadura militar... Triste como quem nasceu a partir da década de 1970 pode apenas supor a loucura que foram aqueles anos totalitários para um bocado de gente que teve o azar, por exemplo, de se chamar Karl Marx.
“Mas depois eu fui trabalhar na trincheira inimiga. Eles me demitiram do ministério das Minas e Energia e eu fui parar na General Eletric, ganhando cinco vezes mais do que eu ganhava como servidor público”. É, não deixa de ser uma ironia interessante, completei.
Mas que bom que deu tudo certo, disse meio sem pensar. Frases vazias que nada nada dizem... “Mas enquanto não deu tudo certo deu tudo errado. A minha companheira também foi demitida, perseguida”.
Silêncio. Acho que ele percebeu o meu embaraço e ratificou: “Sim, mas que bom que deu tudo certo no final. Você tem outro?”, derramando os olhos sobre o mais velho. Tenho, está no carro, apagou. “Mais novo?” Sim, vai fazer cinco anos. “Eu tenho um olho de uma cor e outro de outra, essas misturas genéticas”, arregalou suas janelas da alma e se aproximou para que eu confirmasse a verdade de suas palavras.
É, essas misturas brasileiras. Se você visse o outro não acreditaria. Ele é loiro e braaaaaaaaaaaaaanco, emendei, achando um alívio a conversa ter mudado de tom. “Tá bom o sorvete, meu filho?”, ele perguntou ao garoto. Humrrum, respondeu uma boca melada de chocolate até o nariz.
Vamos, Tomás, tá na hora da sua aula de natação. “Depois traz o outro...”, sugeriu. Claro, pode deixar, até breve!
E saí para a tarde ensolarada. Todavia, mais iluminada do que entrei.
Lu! Sempre me senti meio sozinha. Aqui em Brasília, tirando a familia lógico!
ResponderExcluirMas os seus textos me fazem parecer que não! Eu troco textos como os seus com minhas irmãs, e quando leio o que tu escreves, fico muito feliz!
Bjs e bom final de semana!
Andrea
Adorei a história e fui saber mais! (acho que tenho espírito jornalístico... rs). E posso ilustrá-la?
ResponderExcluirA sorveteria Moka’s grafou na fachada o orgulho de estar de portas abertas há 31 anos. A parte da frente da loja traz o aviso: “Moka’s. Desde 1980”. O dono é Karl Marx Simas, 75 anos, que passou a administração da pequena fábrica de sorvetes artesanais para o filho Marcos Simas, 48 anos. “A gente não faz propaganda nenhuma. Então, essa coisa do ano na fachada é um diferencial. É uma publicidade barata e o retorno é rápido, além de dar credibilidade”, explicou Marcos.
http://www.guiabsb.com.br/brasilia/fotos/foto/31006
Bjs
Patty
Isso aí, Patty!! Obrigada por complementar a minha crônica com outras informações valiosas. Eu também conheço o filho dele, um malhadão carioca que nada tem a ver com o pai, franzino e intelectual. :)
ResponderExcluirOs dois se revezam atrás do balcão da sorveteria que, por mim, não morrerá jamais!!!
Bem que eu vi que estava faltando algo no Karl Marx... Era o R entre o A e o X!! Of course!!! KKKK!
Beijocas,
Luzinha-Lulupisces.
Bom demais isso, né prima? Saber que o outro, aquele ali do lado, pode ser baú de tesouros escondidos. Basta cutucar.
ResponderExcluirMuito bom.
Ah, faltou dizer que quero ir nessa sorveteria.
E quero ir na Stans (do chocolate... falei certo?)
E quero comer as panquecas.
E quero tomar a limonada suíça (da tia Leila).
Tanta coisa que eu quero!!
Bjs,
Valdeir Jr.
31 anos!
ResponderExcluirE eu sou cliente desde o começo!
E discordo... o sorvete continua maravilhoso! Eu amo sorvete e não troco meu Bariloche do Mokas por nenhum italiano cremoso metido a besta, que só tem preço caro e pouca fartura!
Meus favoritos, além do Bariloche (chocolate com passas e castanha de caju, com um toque de rum) são o baunilha com pedaços de chocolate, cereja, brigadeiro e doce de leite.
Seu Marx sempre pareceu ranzinza, mas não é não. É só o jeito dele. Como todo senhor de idade, é só dar trela que ele se abre e aí a conversa vai longe!
Uma vez perguntei a ele porque ele não fazia taças, não colocava coberturas. Ele disse que isso acabava com o gosto do sorvete. Que desde que começou já veio ali para perto Bambola, Calafrio, Taça e Casca etc. etc. etc e todo mundo foi fechando e ele foi ficando.
E é verdade. Espero que continue ali por muito tempo.
gostei muito da conversa e do relato dela. nunca tomei sorvete lá, por sinal. nem sabia que era a sorveteria mais antiga de Brasília. vou testar um dia, obrigada pela dica!! beijos, Débora
ResponderExcluirTexto delicioso. Deu vontade de ir lá tomar sorvete e conhecer Karl Marx.
ResponderExcluirQue descoberta! Um Karl Marx perto de você, na sorveteria de 30 anos. Susto.
ResponderExcluirMuito bom Lú, coitado imagino a perseguição.
ResponderExcluirRenata Assumpção
Para mim, o Moka´s tem gosto de namoro com o Zé Mauro!
ResponderExcluirAndrea Bolzon
Pois é... Que tristeza...
ResponderExcluirNão me lembrava deste texto...
Eu batia ponto até começar a levar a sério a diabetes. O sr Max se aposentou há alguns anos, mas o Marcos está sempre lá.
Lara Silva
Que lembrança boa Lu… Incrível, mas não conheço, fiquei curiosa.
ResponderExcluirCynthia Chayb
Puxa ... pessoas especiais que se vão... sempre uma pena . Aqui foi embora a sorveteria Alaska, fundada em 1910.
ResponderExcluirKarla Liparizzi
Que lindo! Edu gostava daquela sorveteria, mas nunca parei lá p experimentar. Ele nasceu e cresceu na 107 sul.
ResponderExcluirSinara Pedroza
Que bom que ainda existe o Mokas!
ResponderExcluirMarilena Holanda
Bela narrativa, Lu!
ResponderExcluirRelembrei os sabores do Moka´s e a saudade de Brasília aumentou.
Virgínia Pozzatto
Oi, Lu!
ResponderExcluirAmo os seus textos!
Lúcia Andreya
Agora é o filho quem toma conta. Mas o sorvete não é mais o mesmo de outros tempos, não.
ResponderExcluirLeila Brandão
Que lindo texto, Lu!
ResponderExcluirNunca fui nesta sorveteria, acredita?
Ana Cecília Tavares