Mistérios

A partir de hoje passo a postar textos que compõem um livrinho que escrevi chamado "Mato de Molecagens". Espero que curtam!

A fazenda era o destino de todo fim de semana durante toda a minha infância. Com sol ou com chuva, minha mãe botava o fusca na estrada. Vivíamos uma vida simples, de dinheiro curto. Não havia luxos, mas eu tinha um mato para desvendar. Um espaço só meu para crescer aprendendo com a natureza.

Quando meus amigos não estavam comigo na "Salta Pau", eu brincava falando sozinha e em voz alta. Montava currais de pedras, cheios de cavalos e vacas de cascalho; bruxas e fantasmas de arbustos. Meus irmãos eram adolescentes, quase adultos, e eu ainda menina me via meio deslocada, filha única, diferente. Sabe como é entrar na sala no meio do filme? Encontrar o último pedaço do bolo? Não entender o que a piada quis dizer? Pois era assim que eu me sentia. Eu tinha perdido alguma parte da história. A parte era meu pai.

Eu não sabia o que era morte. Minha mãe não teve tempo para explicar, ocupada que estava em arrumar a vida de tantos filhos. Meus irmãos não tinham muito tempo para mim. Eu era uma pirralha e eles já às voltas com romances. O mais velho, trabalhava; a mais velha, fazia faculdade. Todos tinham curado a dor ou disfarçavam bem a falta do pai. No meu caso, só restavam escassas fotografias e uma vaga ideia de quem foi o marido de mamãe. Por isso, algumas noites na fazenda eram mais longas que outras.

A eletricidade só chegou naquele fim de mundo goiano lá pelos meus onze anos. Depois do banho "tcheco" - água esquentada no fogão à lenha vai para a bacia, você entra na bacia e sua mãe pega um caneco e despeja água em você: tcheco, uma esfregada; tcheco, uma ensaboada; tcheco, tcheco... – chegava a hora de dormir. As velas se apagavam e o escuro absoluto tomava conta de tudo.

Ficava tateando meu corpo para ver se eu ainda estava ali. Pegava no meu nariz. Estava lá. Pegava no meu braço. Também estava, ufa! Aí começava a imaginar que a morte era algo assim, como aquela escuridão. Como eu podia estar ali e não me ver? Saía da minha cama tropeçando e ia me encostar na mamãe. Botava a mão em sua barriga e sentia ela subir e descer. Que alívio!! Minha mãe também estava ali. E desse jeito entendi a ausência, este vazio que sobra de alguém que deixou suas lembranças.

Descobri que meu pai estava naquele escuro da noite. Que ele passeava por ali e que eu não precisa ter medo de não enxergar o meu nariz. Porque existem coisas que a gente não enxerga, mas que estão ali. Meu pai estava ao meu lado, mesmo sem poder vê-lo. Assim como meu braço e a barriga da minha mãe.

A descoberta me fez parar de ter medo do que eu não via e de sonhar com fantasmas parecidos com o meu pai. A escuridão ficou mais bonita. E a fazenda mais especial.



Comentários

  1. deu para me imaginar nessa escuridão absoluta, que realmente só existe em lugares como fazendas pré-lâmpadas. lindo texto, Lulu! beijos, Débora

    ResponderExcluir
  2. Seus textos estão melhorando a cada dia!

    Abraço,

    Paula.

    ResponderExcluir
  3. Ai ai Lu... Lindos textos... Antes de terminar o terceiro já estava eu me debulhando... Por que ainda não foram publicados hem, de papel, encadernadinhos?

    Adorei... Bjs,

    Ana Cláudia.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi dear Ana Claudia,

      fico muito honrada em saber que você lê os meus textos e ainda por cima se sente tocada por eles. Isso é muito legal de ter ciência: esse sentimento.

      Poizé, às vezes me pergunto a mesma coisa: quando publicarei um livrinho e realizarei a tríade da completude: gerar um filho, plantar uma árvore, lançar um livro?

      Abraços fraternos,

      Lulupisces.

      Excluir
  4. LINDO TEXTO LU...MINHA AMIGA, CONTINUE NOS ENCANTANDO,VIU?
    BJÃO!NAMASTÊ!
    CYNTHIA

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos