SuperExpedita contra a correnteza dissimulada

O saudoso Corumbá atravessava a fazenda Salta Pau de ponta a ponta. Era um rio cheio de esses, grande cobra jogando o corpo para lá e para cá, meio preguiçosa. Na época da seca, que no cerrado é dura e longa e deixa tudo sem vida, as águas do Corumbá eram mais bonitas. Ficavam clarinhas, verdinhas, pedindo um tibum. Quando chegam as chuvas, lá para o mês de setembro, o rio ficava barrento, uma mistura de amarelo e marrom. Seu volume aumentava e estava na boa hora para pescar.

Foi num desses meses de estiagem, com as águas do Corumbá convidando a gente para um mergulho, que Alessandro e eu resolvemos desobedecer a ordem de ficar bem longe do rio.

– O rio não é lugar para crianças. A correnteza é forte e engana até os adultos. Quanta gente já morreu afogada por ali.

Assim era o discurso de mamãe para botar medo na gente. A tia Leila, mãe do Alessandro, concordava mexendo a cabeça gravemente para cima e para baixo. Ando é três anos mais novo do que eu. O único primo que morava em Brasília na época. Crescemos juntos, aprontando tudo que um par de primos sabe aprontar.

Por isso, naquele dia, a curiosidade venceu o medo. Alessandro e eu estávamos morrendo de vontade de ver o rio de perto. Bolamos um plano: visitar a Expedita para comer doce de leite. Expedita era uma empregada da fazenda que morava numa casa de madeira ao lado do Corumbá. Fazia doces como ninguém e adorava crianças. Andava sempre com um lenço na cabeça e eu ficava imaginando porque ela escondia os cabelos. Era careca? Talvez.

Felizes com o consentimento, saímos, meu primo e eu pela estrada de terra numa euforia que só vendo. A distância era longa porque a sede da Salta Pau fica em cima de um morro e o rio passava lá embaixo. Uma hora depois, Expedita avistou a gente e já veio rindo com sua cara redonda e simpática.

– Expedita, Expedita, tem doce de leite?, gritamos correndo em sua direção.

–Luciana! Sandro! Seus danado! Tão sozinhos? É claro que tem doce de leite. Já tava preparando uma latinha pra levar pro’cês.

Comemos muitas colheres de doce sob o olhar orgulhoso e satisfeito da mulata que sabia agradar o gosto da meninada. Conversa vai, conversa vem, tomamos coragem de colocar o plano em ação.

– Tia Expedita, a gente pode ir lá na beira do rio dar uma olhadinha?, pedi, com a expressão mais inocente do mundo.

– A gente só vai olhar mesmo, eu juro!, completou Alessandro.

– Não sei não. Esse rio é perigoso, meninos. Ocês é pequeno e a mãe docês num ia apreciá não, argumentou a doceira.

– Ah, só um pouquinho. Deixa vai, deixaaaaaaaaaa, choramingamos.

Conseguimos. Em poucos minutos estávamos sentados no barranco vendo o rio passar. A princípio, a promessa de só olhar foi cumprida. Mas, devagar, foi dando uma vontade de experimentar aquela água clarinha, verdinha...

O sol estava tão quente, não tinha ninguém vigiando e, afinal, o Corumbá não tinha essa cara toda de perigoso não. Nem dava para ver a tal correnteza. Isso devia ser invenção de gente grande para atrapalhar brincadeira de criança.

Para aguçar ainda mais a curiosidade, meu primo e eu descobrimos uma canoa presa por uma corda na margem. Fomos até lá. Decidimos brincar de viagem de navio a vapor pelo Corumbá. Alessandro entrou na canoa enquanto eu desamarrei a corda e fiquei segurando com as duas mãos.

Sem que nós dois déssemos conta, a canoa foi sendo levada pela correnteza, essa traiçoeira força do rio que nem sempre se vê e pega muita gente de surpresa. A canoa foi, foi, e eu já não aguentava mais segurá-la.

– Ando, pula, pula! A água está puxando, minha mão está doendo, eu vou largar a corda!, gritei, em pânico.

Mas já era tarde. A canoa estava no meio do Corumbá, indo embora rio abaixo. Alessandro começou a chorar porque sabia que se pulasse na água também seria levado pela correnteza. Eu, da margem, também chorava e via meu primo se afastar, me sentindo culpada por não ter tido força para segurar a corda.

Neste instante-limite, eis que surge voando sobre o barranco um vulto que saltou na água. Era um pássaro? Um avião? Não, era a superExpedita, que nadou até a canoa e trouxe Alessandro assustado, mas são e salvo.

– Eu sabia que boa coisa ôces num tavam fazendo. Essa demora é sinal de coisa errada!, ralhou a mulata de roupa ensopada, trazendo no colo o primo Alessandro bem apavorado.

Muitos anos se passaram e ninguém soube desta história. Os primos e a doceira Expedita mantiveram o segredo trancado a sete chaves. Hoje, tenho saudade dos doces de leite que comia em minha infância. Nunca mais encontrei outro igual.

Porém do Corumbá aprendi a lição: a Natureza tem seus caprichos, manhas e surpresas. Melhor conhecer antes de desafiar.

Comentários

  1. Quando somos crianças ou até mesmo já adolescentes, o medo, é um sentimento que não existe, principalmente se a situação que se apresenta nos encantar,como foi o caso descrito por você...pois, quem na beira de um rio, de água fresca, debaixo de um sol escaldante, e ainda a tentação de se ter uma canoa para deixar se levar rio a baixo,não arriscaria enfrentá-lo? Mas que susto hein?
    Lindo texto...bj.Namastê!
    Cynthia

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  2. Hahahahahaa.... lembro bem desse dia. Nossa que saudade deu da fazenda daquela época. Lindo texto Luciana Assunção!

    Beijos,

    Alessandro, o que quase foi correnteza abaixo!!

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