Orai e vigiai

Domingo à noite. Os meninos ouvem a mãe reler uma historinha divertida, o livro “A galinha que criava um pintinho”. De mensagem claramente feminista, a narrativa da maravilhosa Ana Maria Machado aponta a moral: na hora H, são as mães que põem a mão na massa e resolvem as situações mais complicadas de forma mais pragmática.

Fecho o livro e digo para os meus dois homenzinhos: “poizé, se não fossem as mamães, hein... Os homens geralmente são muito desligados”. “Não somos não”, responde prontamente e ferozmente o primogênito. “Nós somos mais inteligentes. Todo mundo sabe que os homens são mais inteligentes do que as mulheres”.

Chocada, olho para aquele que eu pus no mundo, que eu amamentei, que eu instrui sobre os deveres de casa e também para a prova naquele mesmo domingo e paralisei: de onde saiu esse tremendo machismo? O que podemos fazer, nós mães pós-modernas, para evitar que nossos filhos continuem a pensar como nossos pais e avós?

Será que o machismo é hábito, gravado a ferro e fogo em nossos gânglios basais? Será que machismo é comportamento primitivo tatuado no cérebro reptiliano de todos nós? Se eu, mãe ativa, cosmopolita, culta, leitora, profissional, descolada, jovem, antenada, vibrante e sei lá quantos aparatos mais para sobreviver nesta selva de pedra, não consigo transmitir ao meu filho que sou tão inteligente quanto o pai dele, aonde  nosso gênero está tropeçando?

Mas eu não podia dormir com essa faca atravessada na cabeça. Sem contar que seria um péssimo exemplo para o mais novo, que absorve tudo como esponja. “Meu filho, o que é isso? Mulheres e homens são inteligentes do mesmo modo. E há também homens e mulheres burros do mesmo jeito. Homens e mulheres às vezes têm inteligências diferentes, mas não quer dizer que sejam melhores ou piores umas que as outras".

Ainda com um ar triunfante e insolente, o mais velho relutava em assimilar as palavras da mãe. “Mas o papai é mais inteligente do que você”. Aí não, já era demais! Que audácia! Acabava de ser ferida de morte... Logo yo, ciente de que exerço com dignidade o  papel de fêmea nesse mundo, ouvir tamanha blasfêmia do meu filho, é dose! “De jeito nenhum", respondi enfática. "Somos igualmente inteligentes. E eu não quero mais saber desse tipo de papo aqui em casa”.

Não foi uma saída honrosa e democrática, admito. Mas em situações extremas a gente precisa agir como a galinha do livro: rápida e pragmaticamente. Entretanto o dilema me incomoda: o que faz o meu filho pensar assim? Sim, eu sei que o pai dele é inteligente, um cabeção da Física. Mas eu sou uma cabeçona dos textos, uai!

Não criamos nossos filhos para viver numa guerra dos sexos. Para alimentar cisão. De onde essas constatações equivocadas brotaram? Do mesmo lugar que brotaram episódios de racismo que acompanharam o menino por algum tempo? Como crianças supostamente "bem criadas" absorvem modos de ver tão maquiavelicamente ancestrais?

Morri de vergonha quando descobri, um belo dia, que meu filho estava hostilizando uma menina negra, filha de amigos do meu irmão, durante um fim de semana na fazenda. Meu pai era mulato, minha madrinha negra. Racismo é algo que eu abomino. Não tem perdão. Não tem justificativa. Não tem. Mas meu filho estava sendo racista bem na nossa frente! Paradoxo, pois nada similar foi sequer cogitado entre a gente. Era um comportamento que desconhecíamos.

Por isso as perguntas estão aí e não encontram respostas prontas. Nossos filhos são mais influenciados pelo ambiente social do que pela família? Os pais, subliminarmente, em gestos, palavras, atos e omissões (nossa culpa, nossa tão grande culpa!) estão plantando essas sementes do mal nas novas gerações?

Ai, ai... Criar filho é orai e vigiai sem interrupção, né não?

Comentários

  1. Já tive aluno negro hostilizando uma professora negra, em função mesmo da cor, acredita? Coitados dos professores negros, gordos e feios. Coitadas das pessoas assim. Também odeio preconceito. Acho que a escola hoje é um lugar que deseduca. E o meio é forte sim e como é! Influencia, pela necessidade de identificação das crianças com o grupo, principalmente a medida que vão crescendo. Entendo os pais que querem educar os filhos em casa! E a nossa mídia completa o desserviço. Desliguem a tv pelo amor de Deus! É sim uma luta diária amiga, e, se vencermos algumas batalhas, estaremos no lucro.

    Bjs
    Patty

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  2. Ô, prima! Achei que você lidou com a situação de maneira exemplar. Eu não saberia o que fazer. Oxalá tenha eu seu pulso firme se minha sobrinha me fizer passar por um perrengue parecido.

    Beijos.E não se martirize tanto.
    Algumas acontecem à nossa revelia.
    Simples assim.

    Valdeir Jr.

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  3. Sempre fui uma ferrenha defensora contra qualquer que fosse o preconceito.Busquei educar os meus filhos,ensinando-os que todos são iguais em essência, mas personalidades, características diferentes...e que o grande barato sempre foi essa diversidade.Hoje, já criados, muitas vezes ouço algumas opiniões, que sinceramente, não os reconheço como meus frutos.E imediatamente,me posiciono dizendo que não parece que saíram de mim!Penso que o meio contamina sim, por isso orai, vigiai e meditai...
    bj.Namastê!Cynthia

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  4. O meio influencia, com certeza. E o faz das maneiras mais sutis, impensadas. Quantas propagandas estão por aí afixadas e na tv exibindo homens em posições de ação/decisão e mulheres em posições de adorno? Quantos secretários do lar já tivemos nos ajudando nas tarefas domésticas e desglamourizadas de faxinar,cozinhar o velho feijão com arroz de todo dia, lavar roupa etc? Sem contar que secularmente nossa sociedade tende a valorizar componentes da inteligência racional sobre aqueles da inteligência emocional, fazendo com que o locus de carinho, conforto e segurança, normalmente associado à mãe, fique em segundo plano de importância quando comparado ao locus do poder da razão frequentemente vinculado ao pai. Não somos nem de longe as únicas fontes de influência para nossos filhos, mas podemos ser uma fonte de informação diferenciada. Conversar sobre os diferentes tipos de inteligência existentes, bem como sobre as diferenças complementares no funcionamento cerebral de homens e mulheres (obviamente adequando conteúdo à capacidade de entendimento dos filhotes) pode ser uma boa. Como contraponto à afirmação do Tomazito, sugiro o divertido desenho animado "A Fuga das Galinhas", onde a liderança é feminina e obtém sucesso justamente pela sua capacidade de identificar talentos e aproveitá-los dentro de um projeto coletivo. bjus

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  5. Oi Luciana,

    gostei do seu texto. Nem vou dizer o que penso a respeito do assunto para não ser novamente taxada de fanática. Mas para tudo tem resposta viu?

    Beijos

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    1. Ô Larinha,

      eu te taxei de fanática? Quando? Espero que não tenha sido eu, eu hein!!!

      Sei que pelo espiritismo existe resposta sim. Pode até ser que seja isso mesmo. Tenho a mente aberta para aceitar o desconhecido. Só mesmo o imponderável para explicar certas coisas, não é verdade?

      Abraços fraternos,

      Lulupisces.

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  6. que dureza de situação! posso imaginar sua perplexidade, pois não tenho a menor dúvida quanto aos valores que vocês procuram passar pros filhotes. mas também acho que não somos resultado exclusivamente da criação que recebemos dos nossos pais. tem o ambiente escolar, tem os amigos da quadra, tem as novelas, tem os desenhos animados, tem as propagandas, enfim, são tantas influências... sem falar que também acredito em uma base de personalidade que vem de outras eras. então acho que o negócio é se concentrar no que está ao seu alcance, coisa que sempre achei que você faz belamente. beijos! Débora

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    1. Agradecida, Deboratti!

      A gente tenta fazer o the best, mas de vez em quando só sai o mais ou menos mesmo!!!:)

      Sim, somos produto de todo esse meio ambiente aí fora... Por isso é importante ficar de olhos bem abertos!!

      Um super abraço,

      Lulupisces.

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