Grotão ni mim


Houve um tempo em que o tempo era medido pelo sol nascendo atrás das montanhas e se pondo do outro lado. Um tempo em que nem bússola nem pontos cardeais existiam de forma oficial e explicada. 

Um tempo em que a gente pegava galinha viva no terreiro para comer mais tarde. A galinha que tinha penas que não eram fofas como os pelos dos cachorros trançando em nossas pernas. Amarrada, a ave ficava o dia todo esperando, sem saber que era o seu fim: com a lâmina no pescoço - o sangue guardado para o molho pardo - ou com o pescoço quebrado, para cozer com pequi. 

Houve um tempo em que não havia TV lobotomizando os olhos que tinham tempo para se erguer para o céu e desvendar constelações: aquela ali é de Escorpião, Órion, Três Marias, Cruzeiro do Sul... As nucas cansadas de segurar a cabeça entorpecida pela Via Láctea. O clã se reunia em volta do fogo do fogão à lenha e contava histórias de assombração. O breu engrandecia os medos primitivos naquela vida sem pretensões. 

Houve um tempo em que conhecíamos os barulhos dos pássaros. "Fogo-pagou", sabiá, joão-de-barro, quero-quero, rolinha... Era ouvir e ratificar. Os peixes eram pescados sem pressa na canoa que flutuava sob o sol a pino. Dia após dia a esperança da fartura. A tranqueira como senha inevitável para fazer parte do cosmos. 

E o cosmos ser o chão de cascalho que trinca com a pressão de chinela ou botina. Pés duros, ressequidos. Mãos calosas, mesa posta. Macarrão grosso com açafrão, extrato de tomate e feijão marronzinho, de caldo grosso. Pimenta pra cheirar. Chupar o osso até fazer gorjeios de seixos redondinhos como ovos deslizando pela garganta. 

Houve um tempo que prosear não era palestrar. E que a gente acompanhava o resplandescer das flores que só dura um tiquinho (era botar o olho e já ser outra). Correr para a margem do rio, da lagoa, do lago e presenciar os insetos se debatendo contra a água infinda. Enxergar no rosto calejado dos ribeirinhos uma extensão de nós mesmos. 

Houve um tempo em que sentar era só sentar para ver o dia terminando. Sem intenção, sem aflição. Dormir no quarto espartano: cama, nem sempre, colchão. A moringa fresca ao alcance da mão e uma vela para soprar e apagar os pensamentos. Deixar a noite cair escura sobre o corpo exausto. 

Houve um tempo em que o silêncio era o nosso maior aliado. Os rádios eram caros, os carros também. A natureza se encarregava da música que vinha em tom de cachoeira, em acorde de riacho, clave do sol, assobio de seriema e sapo empapuçado. Sem falar naquele chocalho que os pés produziam na terra pedregosa ou o estampido oco do pó. Pisar no pó e levantar poeira no rosto, na pele áspera de delicadezas. 

Houve um tempo em que a gente mirava o horizonte e ele era só uma linha sem fim para a nossa inferência de outros mundos. E o que mais me espanta é que esse tempo ainda existe quase assim, nesse fundão do Goiás, escondido nas rodovias vicinais, na fé do povo da grota e na resistência de uns desgarrados de cidade grande, que não sabem viver se não for para existir nessa dupla personalidade.

Temas do post (em um só não cabe meu amor):

http://www.youtube.com/watch?v=QcxFxRGLOGk

http://www.youtube.com/watch?v=5UGbNoFsvG4


Comentários

  1. Me transportei lá prá fazenda, onde vivi um tiquim disso...

    Bjs
    Patty

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  2. Patty, my dear friend,

    a fazenda não é mais a mesma, mas as minhas memórias sim! Esse lugar aí foi a fazenda da nossa infância. Me reencontrei com meu eu-passado na Serra da Mesa. Foi lá que minha vida rural passou como um filme novamente.

    Que bom que tivemos esse cadiquim de delicadeza da Terra-Mãe, né?

    Abraço fraterno, amiga amada!

    Lulupisces.

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    1. Coincidentemente, lendo um texto com o tema "cachoeira" para os meus alunos hoje, tive a oportunidade de contar um pouco prá eles das nossas aventuras na fazenda, de como chegávamos à cachoeira esbaforidos e suados, depois de tantas andanças, de termos passado por "provas de fogo" tão corajosas e finalmente tomávamos um banho refrescantissíssimo e feliz naquela banheira d'agua, com direito àquela massagem vigorosa nas costas, que vinha da água batendo tão forte em nós, que sentíamos como se houvessem várias mãos nos dando fortes socos e isso era tão relaxantee! Era o que precisávamos! E o detalhe: tudo isso nós de calças jeans, que depois do banho pesavam 300 quilos sobre nossas pernas, de tão encharcadas! rsrsrs. Ironicamente, meus alunos moram na zona rural, mas nunca passaram por nada parecido...
      Felizes de nós!

      Outro abraço fraterno, também amiga amada...
      Patty

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  3. Olha a filos aí, gente!
    Beleza de texto, Lulu!

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  4. Você escreveu isso pra mim?!
    kkkk...
    Você sabe o que eu penso a respeito do assunto... a escravidão branca do modelo capitalista.... a mais valia do nosso trabalho... do nosso tempo.... da nossa vida!
    Estou quase concluindo meu projeto nesta vida... Capitalizar recursos suficientes para fugir deste modelo o mais rápido que eu puder.
    Ver o sol nascer e o ocaso diário....
    A vida verdadeira!
    Vamos?
    bj,
    Rodrigo.

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    1. Vamos sim, sobrinho querido! Eu topo!

      Beijão!!!

      Lulupisces.

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  5. Oi Luciana, boa noite!

    Mais um lindo e profundo texto. Você já tem material para mais de um livro, mergulhe neste mar também e boa sorte!

    E quero estar no dia do laçamento. Não se esqueça de me avisar com antecedência.

    Beijos, Guti.

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    1. Ai, quem me dera, linda Guti!!!

      Quem sabe um dia você estará lá, a primeira da fila na noite de autógrafos, hein???

      O material é farto, mas os contatos, parcos.:)

      Beijocaspipocas,

      Lulupisces.

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  6. Lu esse é o nosso sonho...eu e o Caca pensamos sériamente, em nos mandarmos daqui, logo que ele se aposente, para viver exatamente assim, isso tudo como você belíssimamente descreveu.Vida simples, boa, saudável,natural!
    bjão!Namastê!
    Cynthia

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    Respostas
    1. Não sei se eu vou deixar, superteacher Cynthia!!! Como vou viver sem as sua aulas de yoga? Sem a sua doce e iluminada presença?

      Sei não, vou te sequestrar!!!! KKK!!

      Abraços fraternos,

      Lulupisces.

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  7. Levo a família toda comigo...praticaremos juntos a Saudação ao Sol todas as manhãs quando ele nascer, e ao se pôr estaremos juntos em meditação , agradecidos e preenchidos do prana da serra, montanha...e entoaremos juntos OOOMMMMMMMMM...todos na mesmíssima vibe!
    Paz.Namastê!
    Cynthia

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