Chapéu de bruxa

Da série "Mato de Molecagens":

No sábado, mamãe me acordava bem cedo:

 – Vamos, vamos, tá na hora. 

Era um fusca azul claro, ou melhor, azul diamante como dizia o documento do carro na bolsa de dona Maria, mãe e também motorista da família de seis filhos. O carro ganhou o nome de Sansão. Escolha digna de sua valentia e força. Levava a gente para a fazenda em sua capacidade máxima, carregando milhões de trecos. A certeza que eu tinha era de que, um dia, o fusquinha seguiria sozinho pela velha estrada, de tão vivo que me parecia ser. 

Do caminho poeirento, lá de cima, eu já avistava o telhado. Pedia para a mamãe ir mais rápido. O Sansão zunindo pelos buracos do chão de terra, derrapando nas curvas do morro da montanha-russa, que era a pequena pista de entrada da fazenda. Queria chegar logo na minha casa, que ficava num pé de pequi em frente à sede. 

O pequizeiro é uma árvore que dá um fruto carnudo, amarelo-ouro, típico da região. Os goianos adoram fazer arroz com pequi, frango cozido com pequi, licor de pequi... Xi, a lista de delícias é longa, melhor parar por aqui.

Mas como meu pé-casa era bonito! Frondoso! Robusto! Tantos galhos grossos e retorcidos para brincar. E o mais legal: um deles seguia em direção ao telhado da casa de verdade. Era escalar e pular para cima das telhas de cerâmica que cobriam o velho casarão construído por meu pai, morto quando eu ainda nem entendia das coisas deste mundo e vivia a boa vida dos bebês.

 Nem preciso dizer que explorar o telhado era minha brincadeira favorita. Mas eu sabia que estava correndo riscos. "Se mamãe me pega, estou frita, assada e cozida!" O telhado era pontudo, em estilo colonial. Um chapéu de bruxa que eu escalava sorrateiramente, em silêncio, feito gato com vontade de comer passarinho. Quando, enfim, alcançava o topo, observava a vida lá embaixo:

– Como entender os adultos? O vento me trazia respostas verdes e azuis.

As árvores em volta reclamavam de seus problemas vegetarianos e eu tentava ouvir o que aquele grupo de vacas, perto do rio lá longe, estaria conversando em tão pacífica reunião. 

Porém, quando os meses de chuva se anunciavam e as goteiras – aquelas dedos-duros – molhavam o piso da sala e os colchões dos quartos, levava broncas e palmadas das boas. Só que eu nem ligava. Queria acordar bem cedo na cidade de novo. Queria pegar a velha estrada de poeira de novo. Queria ver meu pequizeiro de novo. 

O plano para o próximo sábado era catar conchinhas e estrelas do mar no telhado.



Comentários

  1. "Como entender os adultos? O vento me trazia respostas verdes e azuis." Gostei dessa personagem. Escreve mais... :)

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  2. Encantada com seu texto: "O vento me trazia respostas verdes e azuis!" Lindo demais! Não é um textinho, é uma belíssima página. Que coisa boa é ler que emociona!

    Socorro Melo

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  3. Texto gostoso! Despertou as lembranças de minha infância e as cordas da minha felicidade!💕💕💕

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    1. Que bom que gostou! Vou lançar um livro sobre memórias na roça. Chama-se "Mato de Molecagens" pela Editora Giostri, de Sampa

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