Desvãos


"Te  avisei que a cidade era um vão..."
Chico Buarque


Escapei. Fugi do oco e fui atrás da luz. Sei que muita gente encontra a sua fuga nas sendas das redes sociais, nas fuçações internáuticas. Não é o meu caso. Dou bandeira e preciso mesmo sair do meu posto de trabalho e dar uma vagueada pelos espaços físicos. A internet me cansa um pouco. O facebook me cansa um pouco. Olhar para o computador com sua cara estatelada e ofuscante me cansa muito. 

Vaguei por corredores muito dantes navegados. Umas biboquinhas cheias de recortes, coisas do Niemeyer. Quando criança, buscava os cantinhos segredados da Catedral de Brasília. Passava tardes e mais tardes só investigando... Menina solitária no meio da solenidade. 

A madrinha ocupada com a lojinha de souvenirs fazia o contraponto perfeito com a minha liberdade para ser detetive, desvendando espaços escuros, vazios. A arquitetura de Niemeyer gosta de caixotes dentro de caixotes, o que cria desvãos estranhos que podem abrigar portas que se abrem para o nada. 

Daí que cresci assim, procurando meu espaço nesse mundo obscuro. Me sentindo bem nesses nadas à espera de uma imaginação. Brasília era muito desse jeito em sua infância. E eu, criança como ela, aprendi a depender da amplidão e da solidão. 

De repente me deparo com um quadro. Nele, uma Luciana que a artista retratou. Era outra, mas era eu. Espanto. O rosto simetricamente entre a sombra e a luminosidade. A face sombria da Lua onde eu moro na metade do tempo. Aquela pintora nunca conversou comigo, porém me captou. Esfinge com uma digital da palma da mão a selar o destino de escritora de mim mesma. 

Segui trotando pelos salões vazios... Uma paz de tumba. Um silêncio de morte. Um raio de sol deixa sua marca no chão. Trilhões de poeirinhas cósmicas suspensas no ar podem realmente ter se desprendido do Egito antigo. Brasília parece uma cidade que ainda vai ser descoberta debaixo de toneladas de séculos. 

Escavações vão dar conta da riqueza que existiu nessa civilização que cultuou a Justiça mais em forma do que em conteúdo. 

E a minha alma penada, zombeteira, vai acompanhar tudo de perto. 



Tema do post: (uma das minhas preferidas do Chico, na versão lindinha do Beto Guedes):

http://letras.terra.com.br/beto-guedes/149418/




Comentários

  1. Achei show!!! Muito mais poética do que a minha que está guardada na gaveta esperando a hora chegar!!! KKK!

    Beijos,

    Catarina.

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  2. Belo texto Lu!Gostoso de ler, nostálgico,reflexivo...a Brasília que conheci quando aqui cheguei do Rio, já era quase uma adolescente, mas preservava sim,um silêncio e muitos espaços vazios, que à época , eu adolescente, não curtia muito, me trazia uma sensação de abandono e tristeza,a arquitetura da cidade contribui e muito para essa sensação.Hoje curto bastante, e sigo agora buscando o meu espaço nesses ocos,no "oco do ocão"no vazio, que talvez não vá dar realmente em nada...nada...nada...
    Grata pela reflexão que me proporcionou.
    bj.Namastê!
    Cynthia

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  3. Que maravilha eu também saber o que é isso: ter experimentado e experenciado estar lá na Catedral, também criança, olhando prá cima, quase tonta por não conseguir tirar os olhos de seus vitrais coloridos, seus anjos e penduricários santos. Quanta luz!! Era tão imeeeeeensa aos meus olhos de menina! É meio que como um sonho, enevoado, mas rico em poesia e, graças a você, mais próximo de mim. Como era bom aceitarmos com prazer o convite da cidade, não? De correr livremente, percorrer e conquistar os seus espaços...
    Bjs
    Patty

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