Lavando a alma

Num domingo qualquer, qualquer hora, ventania em qualquer direção... Sei que nada será como antes, amanhã... O clássico de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos na voz de Elis Regina é a trilha perfeita para embalar os acontecimentos que os brasilienses viveram ontem: um temporal que eu nunca vi de tão perto. A capacidade da natureza de modificar-se radicalmente em poucos segundos. Depois dessa semana, nada mesmo será como antes. Sete dias que começaram e acabaram provocando estupefação no Brasil, em mim.
O céu se prepara para vir abaixo
Sentada sobre a imensa árvore tombada, tracei meu parelelo com as crianças tombadas em Realengo. Quis escrever sobre o assunto, mas não teria nada a acrescentar em cima do que já havia sido extenuantemente debatido na mídia.
Uma árvore estraçalhada suscita a melancolia


Entretanto os psicólogos são unânimes em afirmar que narrar um evento traumático tem efeito curativo, então aqui vos narro, porque fiquei muito chocada com aquilo tudo. Na sexta, parecia que eu tinha levado uma surra: estava muda. Sem ideias para escrever, vivendo o luto (eu sei de cor os sintomas dele). Eu chorei com a Dilma. Eu me senti mãe, pai e avós daquela gurizada estraçalhada pela loucura.
Estillhaços da vida

Gritos
Nisso em uma semana em que eu já havia sofrido o susto de receber uma ligação da escola por causa do tombo do rebento. Imagina ouvir pelo telefone: "venha buscar o seu filho porque houve um tiroteio dentro do colégio"... É muita danação! E os repórteres explorando a dor da menina Jade, não dando a mínima pelo fato de seu rosto juvenil atônito estar ali, em vídeo para o país inteiro. Como se esse "abutrismo" também não fosse horrível.
O espaço sagrado do brincar foi violado

Aqui jazz um parquinho
Mas acho que todos estávamos de luto, atarantados. Ninguém sabia muito como dizer, o que fazer e o que expor. Era uma tragédia inédita nesse país tão repleto de tragédias diárias, na cidade maravilhosa que tem o carma de abrigar tantos crimes hediondos... Era a gente enfrentando a natureza humana na sua versão mais natural: selvagem.
As marcas da fúria
Corações partidos
Dizem que Deus criou o homem a sua imagem e semelhança. Depois do temporal de ontem, um revoar de folhas e galhos que atingiam as janelas do terceiro andar, fico pensando que somos mais semelhantes mesmo é à Natureza. Essa capacidade de criar delicadezas e pavorosas destruições em poucos segundos.

Pausa para reflexão
A natureza humana... Ninguém também tem ideia precisa de quando ela pode se manifestar a favor do aniquilamento. Há sintomas, há indícios, há histórico... Mas não há sismógrafo, alerta de tsunami e outras geringonças cada dia mais eficientes que nos livre do caos se assim for o desejo natural.
Depois da tempestade vem...

O cerne da questão
Não há, portanto, como prever o surgimento e fim de outros Wellingtons. Eles podem estar sendo gestados ali, na carteira vizinha a do seu filho. Assim como só vi as cigarras que ficam crescendo dentro da terra quando as raízes do gigante verde cederam, expondo a intimidade natural.
Eu sofro de árvores como Manoel de Barros

Sangrando terra
Daí o pavor, a insegurança e o medo inaugurando uma nova dimensão. Resta o consolo de que a natureza destrutiva do homem e de si mesma não é corriqueira, porém cíclica. Então, nada será como antes, amanhã, ao mesmo tempo em que não há nada de novo debaixo do sol.
A descoberta das cigarras

Mas as crinças sempre estão dispostas a aprender

Apesar dos tombos

da dor

e da solidão
E os bombeiros sempre aparecem...

Heróis que salvam a segunda de um grande engarrafamento


Comentários

  1. Sou um dendrólatra/dendrófilo. Sempre fui, mesmo antes de conhecer o termo (Rubem Fonseca me apresentou a alcunha; em uma de suas crônicas ele se descreve assim). Por isso entendo o que você sentiu quando viu o estrago provocado pelo temporal. Eu também passei por isso. Lembra? Te contei essa história. Céu negro (não plúmbeo, negro!). Ruas que viram rios. Raios. Nosso único consolo é que é um fenômeno natural. A gente aceita por isso. O que aconteceu em Realengo não.

    Beijos.

    Lindo texto. Lindas fotos.

    Valdeir Jr

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  2. Uau, Lu. Que fotos. Que tempestade. Que semana. Estou numa semana de iching, e ontem, a propósito de outro assunto, saiu HSieh, trovão e chuva, Liberação, "a tempestade purifica a atmosfera", trata de deixar ir os erros e as faltas, deixar passar, não insistir nas transgressões. Complexo e difícil.
    Grande beijo, amiga.

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  3. Que loucura Lu!! Isto tudo foi a chuva de ontem? Lá no Sudoeste choveu pedrinhas de gelo o estacionamento ficou branquinho de tanto granizo.

    Beijos,

    tia Leila.

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  4. Em uma escola a qual conheço bem porque trabalhei lá por mais vezes, um ex-aluno de 16 anos foi acertar as contas com outro, da mesma idade, que se encontava na escola estudando. Na hora da saída, em plena luz do dia e em pleno centro da cidade, o ex-aluno desferiu golpes contra o colega com uma faca de cozinha. Um professor que presenciou a tudo conseguiu tirar a faca do menino, que fugiu correndo. A vítima não resistiu aos ferimentos e morreu. Foi notícia nacional. Eu por acaso não estava dando aulas lá, mas poderia muito bem estar... o que eu faria, meu Deus?
    Quanto a tragédia em Realengo, fico muito triste por essas crianças, que assistiram tudo isso ao vivo... morte e sangue não combinam com juventude, vida, alegria! Piedade...
    Ah, e que um dia dêem um basta nessa imprensa carniceira, cínica e sem escrúpulos.

    Beijos,

    Patty

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  5. Oi Lu,tudo bom?
    Nossa quanta destruição!!
    Passamos por isso em fevereiro,foi horrivel!
    Minha casa foi destelhada,as árvores da praça totalmente arrancadas do solo,igreja dentre outras construções cairam...foi uma verdadeira cena de terror.
    E isso é so o começo se o homem continuar destruindo a natureza.
    Bjos,
    Djelaine.

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  6. Você transformou dois fatos terríveis (mesmo que o assassinato de adolescentes não tenha páreo com a queda de uma árvore) em uma crônica ilustrada belíssima. A vida é a matéria prima do artista. Parabéns!

    Saulo Cruz

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  7. Lu, ótimo texto. As fotos ficaram incríveis, tudo a ver !!!

    Ana Cláudia

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  8. SENSACIONAL o texto! Adoreiiiii! As imagens da fúria da natureza foram traduzidas muito bem pelo sentimento que nos povoou a semana que passou. Bjs

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  9. Adorei o texto!

    Ainda que não acredite em vítimas (lembre-se, sou espírita).

    Assim como não acredito em consequências do "bulling" ou da internet (acredito em livre-arbítrio).

    E exatamente por ser espírita não acredito também que tenhamos o direito de nos mostrarmos chocados como se nós também não fôssemos culpados pelo que aconteceu. Aquele que nunca fez uma brincadeira de mau gosto com seu colega de escola, que sempre respeitou os mais gordos, os mais feios, os mais retraídos etc. QUE ATIRE A PRIMEIRA PEDRA!

    Quanto ao temporal tenho duas considerações a fazer:

    a) a natureza está diariamente nos mostrando que não é porque somos brasileiros, que nascemos numa terra abençoada, que vamos escapar de sua fúria. A gente não percebe porque não quer.

    b) caro ou não, tive que alugar um toldo para a festa da Larissa (o egoísmo realmente é a maior chaga da humanidade rs)

    Lara

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  10. Depois que postei meu comentário achei que ficou meio contraditório... Então vou explicar...

    Eu não acredito em consequências do "bulling".

    Mas a quase totalidade da população que se diz chocada acredita. É isso que eu considero hipocresia.

    Lara

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  11. Olá Larinha,

    também achei um pouco contraditório.:) Ainda bem que você é tão inteligente que a gente nem precisa "te corrigir".

    A gente fica chocado, eu creio, é com o banho de sangue... Já pensou se todos nós que sofremos bullying (eu também por causa dos meus dentes vampiros, pela falta de pai...) saíssemos atirando por aí? Não sobraria uma criança viva para contar seu passado de trauminhas.;)

    O bullying não explica toda essa carnificina. Ele talvez tenha sido apenas a gota d'água. Ou o início de tudo. Esse rapaz passou por poucas e boas, mas não só no colégio. Sem contar os traços da personalidade dele, que são de um sociopata.

    Sim, a sociedade é hipócrita, totalmente hipócrita.
    Por isso escrevi que tragédias como essa ainda vão se repetir. A globalização cresce na medida da discriminação, da xenofobia, dos guetos. É algo muito estranho.

    Um beijão e obrigada por todos os comentários e elogios às fotos. Valeu!

    Lulupisces.

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  12. Lu, curto muito as suas fotos e esse novo gênero de foto reportagem literária que vc explora tão bem. Confesso que nem sempre tenho tido tempo para ler tudo como gostaria, mas as suas imagens interessantes e belas nunca me deixam na mão!! Sempre saio com algo legal do seu blog.
    bjinhos
    Isa

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