Assombramentos

Depois que você tem filho, o carro se torna quase um refúgio. Detalhe: quem vos escreve é alguém que detesta dirigir e sonha com um motorista particular clone do Morgan Freeman em Driving Miss Daisy.

É no carro que eu tenho tempo de curtir minhas músicas, de acompanhar as letras em brados retumbantes, de pensar alto (às vezes eu me esqueço que estou com os meninos e acabo cometendo gafes altas). Nesses dias, eu vim xingando com os meus botões em volume pra lá de audível: “Esse povo burro...”

- Mamãe, eu ouvi você falar burro, patrulhou o pequeno galego.
- Não, meu filho, eu falei bruxo.
- Mas eu ouvi você falar burro...
- Burro é aquele bicho que parece cavalo, igualzinho no Shrek, lembra?
- Mas burro também é como a gente chama as pessoas mal-educadas, não é?

Mas nem com uma mancada dessas, o carro deixa de ser essa redoma, o espaço da pausa. Ali, encerrada na caixa de metal, eu me reabasteço com o lirismo e as ideologias das músicas que seleciono para ouvir. Ou por meio das que pesco aleatoriamente no dial do rádio. Como é que existe gente que consegue atravessar a cidade sem acompanhamento musical? Mistério...

Hoje vinha ouvindo Belchior. Muito tempo que não curtia, pois eu tinha Belchior em fitas várias. Os CDs são escassos ou esgotados (pelo menos aqueles com as melhores músicas dele). Vim encasquetada a elucubrar como alguém que escreveu: “Como é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel, o que é paixão”, deixa todo mundo órfão, entra no silêncio, no vácuo do esquecimento. Não fecunda mais.

O que leva alguns gênios a ser brilhantes uma vez só? Como Happer Lee e o seu aclamado e maravilhoso To Kill a Mockingbird (O sol é para todos)? Uma obra-prima sem irmãos, sem descendentes. A autora nunca mais escreveu. Esgotou a chama das ideias numa única tacada ou foi esmagada pelo peso do livro? Deve ser mesmo muito difícil se lançar tão bem. A cobrança é muito alta depois.

E Belchior, compositor inacreditavelmente talentoso, caiu no ostracismo... Teria esgotado o jorro de palavras? Mas o que faz alguém permanecer criativo como Chico, Djavan, Caetano, que ainda nos encantam com pérolas eventuais? Intrigante. Certo está o escritor Mário Prata ao afirmar: “Existe uma diferença entre a ideia do que escrever e o começar a escrever”. Pode parecer simples, mas só quem escreve, quem precisa parir um texto legal todos os dias (ou quase) se vê nesse dilema infernal.

Basta conferir a regularidade desse blog. Não vou macular meu espaço e os pensamentos dos outros se não tenho algo interessante para acrescentar (de acordo com os meus parâmetros, é claro). Por isso silencio até que o fogo surja de novo. E morro de medo que um dia eu não tenha mais nada para dizer. Sem nem ter descoberto a escritora que eu podia ter sido...

A criação é bênção e também o seu oposto: a maldição.

* Confiram o link abaixo e vejam porque vale a pena gostar de música:
http://oglobo.globo.com/blogs/clubedomaestro/posts/2011/04/28/musica-garantia-de-saude-para-cerebro-377121.asp

Comentários

  1. Oi Luciana,

    Nunca ouvi falar desse Belchior, so sei que adoro ouvir musica quando estou dirigindo, gosto de uma certa radio, as vezes ela toca as minhas musicas favoritas e quando da certo dessas duas coisas acontecerem ao mesmo tempo - carro em movimento e musica eh quando eu me liberto e me encontro!!!

    Beijos, (e continue escrevendo)

    Evelyn

    ResponderExcluir
  2. Antes de ter filho e marido, minha vida tinha sempre um fundo musical tocando... não vivia sem música! Depois, parei de ouvir, nem mesmo rádio eu ouço! Que que tem a ver, né? Parei de devanear? Como não tenho carro, não sei dizer se ligaria o som nas viagens. Quando escuto determinadas músicas da minha adolescência, vem um nó na garganta, junto com um sorriso nostálgico. Às vezes aqui em casa, fazemos um momento musical anos 80/90 e até 70, com o ABBA. Aí eu me esbaldo. Meu marido então pergunta: Se gosta tanto, por que não houve enquanto anda na rua, no walkman? Sei lá, acho que é para não "atrapalhar" a minha ruminação de problemas... Vida adulta é chata à beça, né...

    Beijos

    Patty

    ResponderExcluir
  3. Então... em relação aos seu texto, hoje vi a notícia sobre a morte da Neuzinha Brizola, que fêz muito sucesso (acho que um só) em 1983, e depois, caiu no esquecimento. E então pensei no quanto deve ser duro pra essas pessoas que passam por um período de grande "badalação", e depois são esquecidas. É depressão na certa.

    Abraços,

    Paulo Magno

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos