Marias-Moles e Penélopes de Atenas

Molly Bloom - ilustração de Cosimo Miorelli



Sintomático a palavra ressocialização escrita na parede fenecer a olhos vistos. Travas, cadeados, grades, arames farpados. Tudo é exclusão e escassez neste ambiente branco estéril.

A telha de amianto amplifica o rumor de vozes e o som da chuva quase nos ensurdece na sala sem forro. Estamos no presídio feminino do Gama, região administrativa do Distrito Federal, e a falta de aconchego e de conforto é a tônica neste microcosmo distópico.

Entretanto, o grupo de detentas se alvoroça. Traços da vida em cores adentram o cárcere. Um trio de mulheres com equipamentos e tralhas de toda ordem chacoalham o rigor árido do Bloco III. O espaço frio vira um cenário para debater afetos sob o olhar agudo das policiais que se revezam à porta gradeada.

As funcionárias sabem que qualquer fagulha, a qualquer momento, pode rebentar desordem, tumulto, rebelião. Mamíferos confinados estão em permanente estado de estresse. Somos animais cuja liberdade é a essência, não a exceção.

Mas a alegria se instala em forma de véus coloridos, objetos de decoração, câmeras fotográficas, filmadoras, canetinhas. As garotas de calça “orange is the new black” estão afoitas para transformar suas realidades, ao menos por um dia. O cenário é montado: de repente surge o quarto de Molly Bloom, a heroína da obra de James Joyce. Ulisses se transporta para um presídio no planalto central brasileiro, a cerca de 40 km da capital da república.

A proposta inusitada é fruto do projeto de mestrado profissional da jornalista Catarina França, cujo objetivo era levar uma vivência literária sobre afetos para mulheres de pouco letramento. “Coloquei dois casais em paralelo, Penélope e Ulisses, de Homero, e Leopold e Molly Bloom, de James Joyce, para refletir a dinâmica de crimes em parceria amorosa, no âmbito do tráfico de drogas. Me surpreendi e fiquei muito gratificada pela prática e pelo incentivo que elas me deram, pois quem diria que uma leitura complexa como Ulisses poderia ser bem assimilada por pessoas de baixa escolaridade?”

Ao todo, foram dez encontros nos quais o clássico da literatura universal foi apresentado em pequenas doses intituladas “Ulisses em 1 minuto”, por meio de dinâmicas simples e criativas como o uso de emojis para retratar as emoções positivas e negativas experimentadas, tanto pelas personagens da ficção quanto pelas 12 presidiárias selecionadas para o estudo, no contexto de encarceramento e também no familiar.

O epílogo desta jornada épica se deu com o testemunho de cada participante na pele de Molly ou de Penélope. Em frente à cinegrafista Ana Beatriz, as mulheres eram desafiadas a contar suas histórias fictícias ou reais em pouco mais de um minuto, ideia similar a do documentário “Jogo de Cena”, do mestre Eduardo Coutinho. “Eu nunca participei de uma coisa tão legal assim. Meu coração estava esperando pelo dia de hoje”, revelou uma das Marias Molly. “Estou me sentindo numa cena de novela”, emendou outra, a fã de Marília Mendonça que soltou a voz numa homenagem pungente.

Assim, o enredo de meninas engravidadas na adolescência, que “fizeram tudo ao contrário do que deveriam”, viciadas ou traficantes em nome do amor, e abandonadas pelo círculo familiar “meus irmãos não sabem se eu tô morta, tô viva ou tô presa”, sopesaram sobre suas escolhas, suas trajetórias e sobre a possibilidade de redenção definitiva com si próprias e com a sociedade.

A catarse coletiva teve choro, palmas, sorrisos, abraços e um lanche tão trivial quanto raro no sistema prisional: cachorro-quente com refrigerante. “Catchup e maionese? Não acredito”, vibrou uma das Penélopes. “KitKat? Nunca comi um desses na vida!”, celebrou outra das mulheres de Atenas.

Nesse cenário de constante vigília punitiva, sair da rotina pode ser libertário e efetivamente ressocializador. Que seja a primeira das inúmeras leituras no cárcere!




Comentários

  1. Que esse projeto 💕inspire outros e outros e outros…a leitura é transformadora!!!
    Cynthia

    ResponderExcluir
  2. Vc estava lá pra escrever esse texto lindo, Lu? 👌🌹💋

    Leila Cruz

    ResponderExcluir
  3. Que lindo isso!

    Tânia Benn

    ResponderExcluir
  4. Uau! Incrível. Vc estava lá p assistir?

    Ana Cecília Tavares

    ResponderExcluir
  5. Gostei Lú, telhas de amianto são altamente cancerígenos... Ainda existem?

    Renata Assumpção

    ResponderExcluir
  6. Que maravilhoso, Lu!

    Clarice Veras

    ResponderExcluir
  7. Lindo! Maravilhoso!!!!! Obrigada Lu! Da sua fã n. 1

    Anna Gabis

    ResponderExcluir
  8. Que bacana!
    Vocês sabem que na semana passada o Edson Cardoso havia me contado uma história sobre teatro em presídios?
    Trata-se de um filme frances baseado numa coisa acontecida em algum país escandinavo.
    Um grupo de presidiários começa a encenar, com sucesso crescente, Esperando Godot. Quando a fama ganha dimensão, são convidados a apresentar a peça no palco principal do país, a autoridades maiores dos poderes estabelecidos.
    Só que, vem nesse dia, resolvem fugir e deixar todo mundo esperando Godot...

    Lunde Braghini

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos