Tempus autumnus


Que puta dia lindo! Outono, né? Cristalino sol matinal de mãos dadas com a brisa temperada da estação mais bonita do ano.

Rômulo esqueceu a lancheira em casa. Acreditem, ainda faço lanches escalafobéticos (prontamente devorados) para o guri de 1.80m. Perdi a conta de quantas vezes tive de levar a térmica de Star Wars até a escola nos períodos letivos.

O colégio mudou tanto… Está bem maior, menos original em sua essência. Retiraram o nome da instituição, esculpido em concreto e tão único, da entrada do prédio. Será que jogaram no lixo? O gramadão que recepcionava os alunos virou estacionamento. Lá dentro, um pátio com mais cinza do que verde.

Fiquei triste e aliviada ao mesmo tempo. Rômulo já está acabando sua jornada por ali e Tomás viveu apenas o antigo espaço, autêntico e acolhedor.

No trajeto até a escola, as casas da 703 sul; o comboio de jovens descendo na parada de ônibus para mais uma manhã de faculdade na UDF; pets e seus tutores; a luz morna e especialíssima da incipiente manhã.

Frida conhece o caminho de cor. Levou os meninos para as aulas durante todos os quase nove anos de sua canina existência. Ela curte, se sente uma guardiã realizando uma missão pastoril: manter seus humanos unidos e protegidos.

Ela não tem ideia de que não é apenas mais um passeio. Tenho pressa. Não lhe permito parar de minuto a minuto para identificar os cheiros de seus semelhantes espalhados pela grama.

Entretanto, sou eu que, como sempre, não resisto à beleza do que vejo. Clico aqui e ali, encantada com a rotina da cidade. O outono é um deleite visual: ainda não está seco, mas também não está chuvoso. Árvores e flores brilham numa intensidade incorpórea.

Lembro da observação que a poeta do Mato Grosso fez sobre Brasília: “parece um simulacro”. Sim, é tão bela no final de março e durante abril que nos convida ao diáfano. Estou dentro de um conto de Lygia. Vivo presa ao quadrado emoldurado:


"O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la.
- Parece que hoje está mais nítida…
— Nítida? — repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída. 
— Nítida, como?
- As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela?"


Isso, nitidez. O quadro é uma pastagem com curicacas e carcarás. Flamboyants com as raízes à mostra me perseguem. As flores das barrigudas forram as calçadas. Não é a Caçada de Lygia, porém me sinto fisgada, inserida num diorama caprichosamente calculado.

De repente, uma senhora me arranca do torpor. Estica um papelzinho para mim, com uns garranchos em caneta esferográfica: você sabe onde fica esse endereço? As letras e os números bizarramente brasilienses. Estaríamos num metaverso anterior aos avanços dos chatos localizadores? 

Me senti antiga, antiquada: mulher hetéro, de classe média, casada há 30 anos, sozinha estrada afora, levando lanche para o filhinho. Nenhuma hashtag engajada da atualidade me comporta. Talvez se eu fosse atrás da minha ancestralidade… #leiamulheresindígenas.

Ri e segui, não sem antes dar um alô para o cachorro Scooby, de semblante sério, a vigiar Frida  e eu, encastelado na torre.




Comentários

  1. Mãe sempre mãe Lu💕não interessa a idades deles ,eu até hoje de vez enquando dou assistente com rango pro filhos e principalmente prós netos🥰

    ResponderExcluir
  2. Amei prima!!! Quanta riqueza de detalhes em apenas um trajeto. Você seria uma exímia escrivã… Ainda bem que não é…. De escrava nessa vida, basta eu! KKK!

    Sua prima pronto Jôsy

    ResponderExcluir
  3. Eu estava junto, mas a magia do cotidiano só surgiu nas palavras da Luciana.

    Bernardo Mello

    ResponderExcluir
  4. É muita poesia...

    Eugenia Jardim

    ResponderExcluir
  5. Dias de sol e céu azulzimmmm
    Eu AMO!

    Polyanna Caldeira

    ResponderExcluir
  6. Nossa Brasília é muito show!!!

    Márcia Renault

    ResponderExcluir
  7. Lu filhos crescem, ficam velhos e suas mãezinhas mesmo velhinhas cuidam deles com todo amor e ternura ❤️❤️❤️💪 elas nunca cansa de fazer por seus filhos!!!
    Amor 💖 de mãe é inexplicável!!

    ResponderExcluir
  8. Lu realmente vc tem um dom de colocar em palavras tudo, simplesmente tudo…descrição perfeita , bela e poética dessa beleza que está Brasília, estou achando a cidade radiante🙏😘
    Cynthia

    ResponderExcluir
  9. Coisa linda isso! E a foto então?

    Karla Liparizzi

    ResponderExcluir
  10. Que inveja desse dom de descrever o cotidiano com tanta cumplicidade🌹🌹
    Karla

    ResponderExcluir
  11. Que belo relato! Tua narrativa é tão rica e envolvente, Lu! Não espero nada menos que um romance...

    ResponderExcluir
  12. A cada etapa do texto, fui parando e imaginando… até chegar ao sisudo Scooby… e então ao comentário do Bernardo (que pareceu-me querer ser visto - e escrito - pela Luciana) ☺️

    Karol Simões

    ResponderExcluir
  13. Vou virar frequentadora do blog!!! E querp uma lancheira (na Bahia, merendeira) com garrafa térmica de Star Wars!! (que nunca assisti de verdade 🤪

    ResponderExcluir
  14. Delícia de texto brasiliense, ancestral e maternal 😘

    ResponderExcluir
  15. Lu, filhos crescem mas suas mães não se cansam de fazer as coisas por eles com todo amor 💕 e ternura!!!

    Graça

    ResponderExcluir
  16. Hj aqui em SP o 1° dia típico de outono tal qual vc descreveu tão belae poeticamente - céu azul sharp. Pena que em segundona típica só resolvendo perrengue…

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos