Kintsugi(s)


Os livros têm uma história além da história que contém. Objetos detentores de sua própria narrativa.
Personagens que descrevem caminhos percorridos alhures, de mãos em mãos (afetuosas?); de olhar em olhar.
Trajetos que às vezes perdem o registro do princípio. Qual primeiro contato terão estabelecido? De que cidade empreenderam suas jornadas pelo mundo? Por que partiram? Como chegaram até aqui?
As folhas amareladas se desprendem. Lombadas carcomidas pelo cansaço dos anos, pelo esforço de abrirem-se ao escrutínio alheio, pedem gentileza.
Já passaram da casa dos 50 e a existência deixou marcas indeléveis do percurso. Certamente não foi suave.
Os livros podem sofrer de maus-tratos, de indiferença, de solidão.
Buscam uma estante segura para manter a dignidade e a memória imortalizadas.
Eles não diferem de nós.



Baça, a lua me saúda
enfadada da obsessão
humana
por sua figura.



A aparição se deu na noite do meu aniversário. Sedento e faminto, um tanto esquálido, um fantasma com chiado dramático e rosto meio trágico. Quase pude ouvir Christine, Christine!, o grito lancinante brotando dos calabouços da Ópera de Paris, que também era o fundo do quintal escurecido pelo vulto das árvores.
Naquela mesma noite, descobri que se tratava de uma felina, uma gata vaidosa, mas combalida. Kajal nos olhos, atrevida. Ganhou chamego e comida. E a alcunha de Ópera.
Desde então, vem se tornando uma fantasminha cada dia mais folgada, ainda assustadora para os bichanos da casa.
Será que este trio ternura vai dar certo? Só o tempo dirá se o presente de aniversário não é de grego. ;)




O outono se insinua
dança o voil 
da janela lateral.
Frescor na manhã irradia
a despeito do egocêntrico
Verão.




Partiu um
partiu outro
quedamos
partidos
ninho kintsugi.
Restam três gatos.
Balaio emendado
a ouro.


Kintsugi é a arte japonesa de juntar as peças de cerâmica partida com ouro. A premissa é incentivar a ideia de que as pessoas devem aceitar suas imperfeições e defeitos, para poder criar uma versão mais forte e bonita da arte. Cada parte reparada com outro é tratada como algo único, e as “cicatrizes” que ficam na cerâmica são dadas como áreas importantes do design.


Comentários

  1. Opera terá sua redenção, assim como no musical...

    Tomas

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  2. Excelente 👏👏👏
    O livro: seja do Latim liber,“papel, pergaminho”, seja do grego “biblíon” , sem dúvida é o mais poderoso dos “instrumentos” já criados pelo homem. A partir das suas folhas, não raro, envelhecidas, passamos a sentir o cheiro nauseante da história humana; a textura das mais variadas culturas e o gosto ainda entremeado na língua de um incipiente saber científico entre as ciências humanas.

    Adriano Shulc

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  3. Emendando e ressignificando a vida - só este título já impacta!

    Bianca Duqueviz

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  4. Que lindo, tia!

    Laura Mocellin

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  5. Luciana , vc está demais , hein ? Ótimos textos💋 Ressignificando em alto estilo ! Vai sair um mulherão, hein ? Bernardo que se cuide 😂😂😂 e que venham os remendos de ouro 💃🏻💃🏻💃🏻

    Karla Liparizzi

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  6. Oi minha sobrinha!
    Às vezes me pergunto...da onde saiu tanta sabedoria? Genética paterna!?👀
    Vc escreve bem demaisssss...👏👏👏👏😍 Até uma singela aparição de uma "felina" ,se torna poética... rsrsrs mt lindo!
    Eu amo gato! Vou ter um... só estou esperando o desmame pra traze- lo, pra casa!🐈

    Ambrosina Militão

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  7. Sempre surpreendente Lu , os seus textos, suas reflexões…estou apaixonada pela Ópera😉
    Cynthia

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  8. Parabéns por mais esta criação sua, querida Luciana - maravilha - suas composições de imagens + textos nos tocam em muitas instâncias. E creio que de vc também partem de muitas instâncias. Sua criatividade é rica, colorida e sonora. Obrigada por mais esta 👏🏼🥰🙏🏼😘🌹

    Guti Dib

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  9. Gostei Manalú!! Eu nunca tinha lido ou ouvido falar da técnica japonesa Kintsugi.
    Colar cerâmica quebrada com ouro
    É muito mais que ressignificar um objeto. É valorizá-lo .Luciana é "cultura transversal", multifacetada.

    Marilena Holanda

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  10. Sincronicidade, Lu! Andei pensando que fim merecia um objeto querido que quebrei: jogar fora porque alguns dizem que não se deve manter coisas estragadas em casa, ou fazer um belo remendo como fazem os japoneses? Acabei ficando com a segunda opção, mesmo sem ouro. Colei com super bonder e a vida seguiu.
    Bj,
    Flávia

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  11. Lu, acho que te conheci no Lago Norte no dia do teu casamento.
    Estou lesa ou vc era aquela bonequinha de vestido e chapéu cor de rosa?
    Nós falamos: CASA NUEVA, VIDA NUEVA.
    Ojalá que sean muy felices en ella. Se atropellarán las inspiraciones en tu sofisticada cabecita, en ese ambiente nuevo.
    Lendo teus escritos aumento meu vocabulário. São interessantes e didáticos para esta estrangeira que continua ávida por conhecer essa língua maravilhosa e musical que é o português.
    Sorte muita 🍀. 😘

    Norma

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  12. Always enjoy your posts! And the Google translate adds an extra level of eccentricity.

    Brian Batuello

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  13. Que legal!

    Tenho mta coisa rachada e quebrada em casa pela qual tenho carinho e sempre pensei nessa técnica do kintsugi. Legal receber seu texto sobre isso agora.

    Marina Aranha

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