Tempestade perfeita
Na hora do ângelus, todos os anjos estavam abrigados sobre as nuvens, mas isso não impediu que suas asas pendessem encharcadas pela chuva que escondeu o pôr do sol. Tudo ficou entre o chumbo e o verde-escuro.
Ela ia à missa numa noite de quarta. Dirigia com parcimônia, apaixonada pelo céu temperamental. Um raio caiu ao longe, à direita, porém o trovão ressoou nas proximidades da curva acentuada. O motorista do carro da frente se assustou com o estrondo e deu uma pequena guinada com o volante. Nesse momento retumbante, a rádio começou a tocar:
That's me in the corner
That's me in the spotlight
Losing my religion
Trying to keep up with you
And I don't know if I can do it
Oh no, I've said too much
I haven't said enough
Perfect timing, pensou sorrindo.
Refletiu que nunca teve de fato um religião. Portanto, não poderia perder nada como fala a música, uma de suas favoritas.
Chegou à histórica e singela igreja de Nossa Senhora do Rosário de Pompéia (a pompa do nome não condiz com a simplicidade do templo). Seria a primeira vez que assistiria a celebração eucarística ali. Convite da amiga aniversariante, católica convicta.
Na homilia, o pároco lembrou daqueles que têm fé “fogo de palha”. Da urgência de se resgatar a religiosidade, a capacidade de acreditar e de vivenciar o milagre de Jesus, “o rosto humano de Deus”, como disse o hino entoado durante a comunhão. Também gostava dessa canção, ponderou, sem deixar de notar que aqueles recados todos ao mesmo tempo: do céu, dos anjos, da rádio e do padre pareciam uma espécie de complô. Conexões telúricas ou mediúnicas?
Quis muito se ajoelhar com a devoção dos que estavam ao redor (todavia quedou-se de pé). Por longos minutos se imaginou tomada pela tal fé que remove montanhas. Tocada no âmago pelo espírito santo.
Ela crê que talvez um dia será capaz de se comover menos com as estátuas dos santos e mais com as sagradas escrituras. Nesse instante, se transformará em uma iconoclasta insuspeita. Estará pronta para ver além das imagens que a distraem.
Até lá, o Criador segue a escrever certo por linhas tortas, enquanto ela rabisca, sem minúcias nem parábolas, seu interminável caderno de caligrafia.
Ave Maria, que lindo!
ResponderExcluirZildete Melo
Igrejnha da Vila Planalto. Frequentei durante 15 anos. Morava a 500 mts dela.Todos meus irmãos se casaram aí, com Dom Ávila, pároco durante muitos anos.
ResponderExcluirSeverino Barbosa
Que bela reflexão, Lu! Essa é a igrejinha da Vila Planalto?
ResponderExcluirCynthia Chaib
Uau!!! Bem lindo isso!
ResponderExcluirAna Paula
Querida, você escreve muito bem. É um dom que eu invejo. Que bom que segue em frente, pois é um prazer ler você, sempre.
ResponderExcluirKarla Lipparizzi
Como gosto de suas crônicas. Está particularmente me tocou. Como gostaria de ter fé em momentos difíceis como estou passando. Talvez os deuses escrevam mesmo certo por linhas tortas. Grata.
ResponderExcluirÂngela Sollberger
Calou fundo e concordou com o que Inácio observou: as graças que se recebe na missa, todo mundo. Essa questão de que a missa é fonte de graças infinitas para todos que dela participam, como católicos ou não.
ResponderExcluirCarmem Cecília
Muito bom o texto!
ResponderExcluirRodrigo Holanda
Sou sua fã.
ResponderExcluirBianca Duqueviz
Muito bom o texto!
ResponderExcluirRenata Assumpção