Miolos Enternecidos



Recorte da biblioteca da Aliança Francesa em Brasília



Enquanto uns fazem culto às armas, eu assumo o fetiche por bibliotecas. 

Na casa apertada para a família de sete irmãos, o movimento parecia incessante. Amigos e namorados dos mais velhos iam e vinham, num frenesi próprio da juventude. Diante de tantos afazeres, mamãe também dispunha de pouco tempo à toa. 

Perdida no meio daquele filme de ação estava eu, a caçula infante, que se refugiava da confusão no único cantinho da residência que se mostrava à prova da rotina agitada, a minibiblioteca. Prateleiras de madeira pintadas de verde-escuro pela quinta irmã, Vanja, guardavam uma pequena coleção de livros de todos os tipos: da enciclopédia Delta Larousse a obras místicas de Lobsang Rampa, consumidas avidamente pelo irmão primogênito, Ricardo, numa fase de busca pelo autoconhecimento que o fizesse diminuir a compulsão por comida (nessa época ele era tão gordo que ganhou o apelido de Tim Maia). 

A capa do “A 3ª Visão”, com um enorme olho encravado na testa de um homem careca (o autor, suponho) me enchia de temor febril. Pensar que muitos anos depois eu iria ser uma adepta do yoga. Conexões telúricas, destino, matemática do caos? 

Entretanto, era uma das ilustrações de “Alice através do Espelho” que mais me instigava. Um ovo humanoide sentado no alto do muro, balançando suas pernas desproporcionalmente curtas. Deslocado, exótico, cai-não-cai. Uma metáfora da garotinha solitária que fui dentro da minha própria família. Descontextualizada a ver a vida passar lá de cima, divisando um horizonte de amigos amalucados à imagem e semelhança das personagens mais famosas de Lewis Carroll. 

Recordo vagamente de algum livro de Monteiro Lobato: “Aritmética da Emília” ou “Emília no país da Gramática”. Todavia, o que eu gostava mesmo era da tal “ Coleção do Vovô Felício”, com seus livrões retangulares de capa dura azul-celeste. Recheados com narrativas diversas sobre animais, lendas, mitos e sei lá mais o quê. Escrevi anteriormente sobre a paixão que nutria por esses volumes. Gostaria de haver salvo apenas um dos exemplares. Onde foram parar? Quando desapareceram da cena familiar? 

Naquele canto da sala, acompanhada pelos livros, estava em paz. Não era de interesse de ninguém o que lá eu fazia. Meus irmãos não tinham mais tempo para sonhar acordados. Trabalhavam, estudavam, namoravam e pagavam contas. A independência financeira e emocional foi prematura para os órfãos de pai. 

Mamãe, às vezes, se dava ao luxo de comprar o jornal e ler todos os cadernos. Essa lembrança também é muito forte em mim. Ela deixava cair as folhas e eu as esparramava ao lado dela, sentadinha ao chão. Ensaiei minhas primeiras leituras de matérias e reportagens das páginas policiais. Cresci acompanhada pelo espectro da morte. Portanto, não me parecia mórbido ler como as pessoas morreram e porque morreram. 

O fato é que tive uma infância longe do convencional, uma família nada tradicional e uma mãe que passava ao largo do estereótipo da maternidade idealizada. A minibiblioteca da casa nº 21, da quadra 715 sul, pois, virou um remanso, local de acolhimento e serenidade. Desde lá, são esses os sentimentos que as bibliotecas me evocam. Templos de imaginação e contemplação, onde o silêncio se materializa em paz de espírito. Nada de ruim pode acontecer dentro de uma sala à meia luz, com poltronas e paredes tomadas por livros. 

Ao menos que um sociopata decida entrar atirando pela porta e estoure os meus miolos enternecidos.

Comentários

  1. Difícil lidar com uma bola de neve quando o único meio de destruí-la é uma pinça.
    Há muitas saídas, mas a única, talvez, se baseie em uma educação paralela (ou tangente!) a essa que nos acostumamos tanto.


    Parabéns, dona Lu, pelo texto.

    Do RegisObama.

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  2. A, Lú, que linda essa sua vivência, esse texto, essa sua paixão por bibliotecas´. Admiro quem as tem, o silêncio delas sempre me perturbou, não consigo. Adoro as livrarias e olha que não sou agitada...

    Renata Assumpção

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  3. Hoje recebi e-mail da Saraiva, dizendo que a Saraiva de Copacabana fechou. Muitas livrarias fechando. Uma tragédia mesmo.

    Rogelma Ferreira

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  4. Também gosto de bibliotecas. A foto dessa, por sinal, está linda!

    Andréya

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  5. Lembrei de quando a Andréa e eu fugíamos da Escola de Música para entrar na biblioteca do CESAS... Na época era uma boa biblioteca. Não sei se ainda existe.

    Mônica Ramos Emery

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  6. Gosto mesmo de ler o que escreve, com paixão, com alma e viva sensibilidade...
    Ah! Coleção do Vovô Felício!!
    Que saudade tenho dela!!
    Hj seria uma festa para os meus netos Samuel e Francisco...
    Uma pena mesmo, um fundo buraco esses desaparecimentos: essas coleções, livro sobre aves do Brasil, a mim dado por meu pai e por ele autografado (ele já sabia do meu apreço e ligação visceral com o mato, o barro...), o relógio cuco...
    Só pra lembrar de algumas faltas doídas...

    Marilena Holanda

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