Quimeras do real


E no princípio era quase assim...

Ontem descobri que ataquei de Franz Kafka sem saber. Um dia, em Berlim, o autor encontrou uma menina chorando por ter perdido a boneca. Comovido, resolveu se transformar em um “carteiro de bonecas” e entregar diariamente uma carta à garota, para que ela pensasse que a boneca não havia desaparecido, mas apenas viajado para viver grandes aventuras. 

O mesmo fiz com meus filhos e aqui no blog postei uma história sobre a abdução do hamster que, na verdade, morreu uma morte inglória no fundo do armário. Eles até hoje acreditam que o ratinho foi levado para outro planeta. E, desse modo, o amor se transformou em outra coisa; depositado em um lugar mais tranquilo e confortável. É assim que devemos seguir... Reconstruindo nossas perdas, nem que seja num conto de fadas, pois, não se enganem, sempre perderemos algo ou alguém a quem amamos. 

E acho que foi assim que, naturalmente e inconscientemente, redesenhei um significado afetivo para a casa da minha irmã mais velha. De repente, me pego reconstruindo uma conexão com o materno, o paterno e com o lar da infância a partir desse espaço que não era legitimamente meu, mas do qual me apropriei graças à generosidade de Marilena. 

Quando Josenilton, o querido Jô, comprou essa casinha de madeira pré-fabricada, eu me encontrava no auge da adolescência. O endereço era no fim do mundo... O Lago Norte tinha ares de zona rural, ou melhor, de matagal. Nenhum morador nos dois terrenos vizinhos. Aliás, um dos lotes segue vazio até hoje. 

Era um casebre simplório. Um embrião de sonho que estava se concretizando para ele, minha irmã e seus dois filhos pequenos: sair de um apartamento apertado no Cruzeiro Novo e ganhar a liberdade da natureza que sempre amaram. Recordo que mamãe não colocou a mão dela no fogo por aquele investimento não. O bairro não parecia predisposto a decolar. Mas, Jô era um cara que via lá na frente... E estava certo. 

Pena que o sonho para ele teve fim prematuro. Interrompido num acidente de carro ao retornar da pequena fazenda que ele e minha irmã haviam comprado há pouco. Um segundo sonho que Jô acreditou que desfrutaria com sua família de cobrinhas (ele chamava Marilena carinhosamente de Jararaca ou Cascavel). E lá se ia o meu segundo pai (ou seria o primeiro?). 

Todavia, a casa do Lago Norte seguiu na vida da minha irmã e de meus sobrinhos. Algumas melhorias foram arregimentadas. Paredes de alvenaria aqui e ali, porém o cantinho não perdeu o jeito de cantinho. Continuou singelo e delicado, cercado de esfuziante jardim por todos os lados. Plantas amadas pela dona da casa, agrônoma e paisagista nas horas vagas. 

Nesse lugar do sonho inicial de criar uma família em meio ao espaço verde, resolvi me casar. Era uma maneira de estar com esse segundo pai que me levaria ao altar orgulhoso. Senti que Jô estava ao meu lado. Teria sido a minha escolha natural, apesar da presença de dois irmãos mais velhos. Então, para os presentes eu caminhei sozinha. Mas só para eles. 

E de 1998 para cá, esse endereço virou o salão de festas oficial da minha pequena família. Primeiro ano do Rômulo, dois anos do Tomás, três, quatro, cinco, seis... Meus filhos consideram a casa da tia Marilena o lugar mais legal do mundo para fazer suas comemorações.

Vovó Maria se foi e minha irmã mais velha reivindicou o trono de matriarca com muita precisão. Natais, Dias das Mães, dos Pais... É ali que todos vão beber da fonte dos laços familiares. Chão que concentra lembranças e afeições. 

Provavelmente por isso, a casa do Lago Norte encanta. A cada celebração, ouço sempre as mesmas exclamações: “Aqui é tão gostoso, tão bonitinho!”; “adorei a casa, o jardim”; “eu queria morar nessa casa”; a casa da sua irmã é muito legal!”... 

Interessante... Uma casinha que, se você olhar distraído, não tem nada demais. Entretanto, ao cruzar o portão, não se engane: você corre o risco de se apaixonar.

Só penso no Jô rindo de sua traquinagem lá do céu. Sua utopia está cumprida. 



Comentários

  1. Lindo texto!!

    Tive pouco tempo de convívio com meu cunhado mas o bastante para considerá- lo amigo-irmão. Além de Marilena, q é a irmã que não tive.

    Márcia Holanda.

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  2. Lindo e emocionante, Lulu!
    Beijos
    Débora

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  3. Você sempre nos encantando com seus textos...por que será que eu te admiro,hein?
    Tive o prazer de conhecer esse cantinho, a casa do lago norte, não sei em que aniversário foi , um ano do Rômulo ou foi niver do Tomás?! foi lá também que eu conheci sua mãe.
    bjão.
    Namastê!
    Cynthia

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  4. Lu do coração,

    Você me ouviu falar que adoraria morar numa casa como a da sua irmã? kkk parece que a fala que você reproduz no blogue é minha! Mas, por enquanto, eu paro e espero a vontade passar.... Também entendi o motivo das plantas tão lindas: tem alguém muito especializado cuidando delas!

    Beijo da
    Carmem Cecília.

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  5. Amei!
    Um lugas simples no meio da natureza é tudo que o bicho-homem precisa pra se sentir em casa...#soudomato...

    Marina Caldana

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  6. É dona Luciana, é extamente disso que a vida é feita: Momentos! Momentos os quais temos que passar, sendo bons ou não, para o nosso próprio aprendizado. Nada na vida é por acaso, e nem sempre segue do jeito que gostaríamos!
    "O melhor álbum de fotografia de nossas vidas é nossa memória, nela ficam gravadas fotos reais de momento bons e ruins de nossa vida". (Frase de "Márcia Reis)

    Beijos, Lu!

    tia Leila.

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  7. Querida Luciana, boa tarde!

    Como são seus escritos gostosos, bonitos e tocando nosso coração, grata, valeu!

    Beijos, saudade, meus cumprimentos e admiração pela sua arte literária,

    Guti.

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  8. Excelente. Acertou em cheio!
    Tá na hora da coleção em forma de livro...

    Davi.

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  9. Sem palavras irmã, chorei de emoção...
    Para mim isto aqui é tudo isso e muito mais, E parte inseparável de mim, tem minha alma, trajetória de vida, perdas e ganhos...
    E adoro compartilhar isso com os meus (parentes e amigos). Gosto da casa vazia, toda minha e ela cheia, com toda aquela correria, bagunça e o conforto que todos sentem quando aqui vem e se instalam. Sejam por algumas horas ou dias/meses. Uma casa acolhedora, como sempre quis e faço questão de manter...

    Bjos e uma boa semana, irmã de alma.

    Marilena.

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  10. Também deixei cair algumas lágrimas... adorei. Beijos, Mô

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