Barbaridade!




Uma colega de trabalho desabafa comigo. Chateada está, pois a mãe se esqueceu de buscar a neta na escola. “Eu disse que contratava a van, mas ela se comprometeu!” Chateia, sim, é terrível. Ser “esquecida” na escola é algo devastador quando se tem seis anos. Eu sei por experiência própria. 

Na confusão da vida familiar pós-morte prematura de um pai provedor/controlador, mamãe se esqueceu, não uma ou duas vezes, porém várias, de me pegar na escola. E o mais grave: estudava no turno vespertino. Via a noite cair e ninguém aparecer no portão... Acabava na casa das freiras do Notre Dame, que ficava logo atrás do colégio. Por quantas noites senti o cheirinho bom da janta delas... Mas não se enganem: as muquiranas nunca me convidaram para uma ceia sequer. 

Isso fica na nossa cabeça. Um trauminha, é verdade. Brincar de polícia e ladrão, não. Ué, mas por que raios essa brincadeira atualmente considerada violenta entrou na história? Porque hoje as pessoas ficam chocadas se os filhos brincam com armas de brinquedo. Se os filhos fingem que estão matando o coleguinha numa guerra do bem contra o mal. Que falácia! Que hipocrisia! 

Brincar de soldado, guerra, mocinho e bandido nunca levou ninguém a ficar mais ou menos violento. Meu caçula costuma descer para debaixo do bloco todo paramentado. Imagino o contragosto nas faces das pessoas – inclusive em membros da minha própria família - ao ver o garoto de roupa de camuflagem, espada de plástico na cintura, arma Nerf na mão. Podia fazer parte do casting de "Mercenários 2". Sylvester Stallone aprovaria. Adrenalina pura. 

Esses devaneios tipicamente infantis, principalmente no mundo masculino, não são capazes - sozinhos - de transformar um garoto em uma ameaça à ordem social. Rômulo não bate, não morde e não agride fisicamente coleguinhas e adultos, fora episódios esporádicos comuns à infância que, ressalta Marcelo Coelho - articulista da Folha de São Paulo, "é a fase mais bárbara do ser humano". Lembre-se que crescemos vendo a Mônica bater no Cebolinha, né? Meu filho é um guri saudável. Gosta de experimentar e agora entrou numas de ser aventureiro.

Passei minha meninice brincando de polícia e ladrão e carniça, brincadeiras que, nos dias atuais, são consideradas politicamente incorretas. Creio que não sou psicopata até hoje. E olha que eu testo meus limites vendo esse bando de séries policiais. Ou mesmo o Jornal Nacional que, de vez em quando, é mais grotesco do que o canal de investigação ID.

Todavia, a sociedade está descompassada. O patrulhamento beira à histeria. Aqueles revólveres de espoleta eram tão divertidos! O.K., as armas de brinquedo ficaram tão perfeitas que se confundiam com as reais. Então, que os armamentos sejam claramente inofensivos: roxos, laranjas, de bolinhas.  

O importante é que a criança saiba diferenciar a realidade da fantasia. Entender que as armas de verdade ferem e matam. É preciso ensinar que todo ato praticado tem consequências boas ou ruins. E que eles irão arcar com elas, para o bem e para o mal. 

Sou veemente contra pistolas sangrentas ao alcance de qualquer criança e adolescente. Qualquer coisa que lance um projétil mortífero deveria estar longe das gavetas, dos armários e dos cofres de alguém, salvo as exceções profissionais. E, ainda assim, com muita cautela. Armas em casa e tragédia são quase uma redundância. 

Mas daí a ficar nessa de que as crianças não podem brincar de nada que seja minimamente violento é tapar o sol com a peneira. Creio que os pais devem estabelecer as regras. Existem muitos games excessivamente violentos ao alcance de crianças pequenas. Filmes idem. Só que isso é de responsabilidade da família. Expor seu filho pequeno ao mundo-cão é uma questão de escolha. Aliás, como tudo nessa vida. 

Portanto, pra quê essa retaliação às brincadeiras clássicas? Elas são aprendizado também. O que pode destruir de verdade a cabecinha dessa meninada é falta de amor, atenção, dedicação, gesto acolhedor... A ausência de porto-seguro dentro do próprio lar. E o descaso com os limites, esse artigo de luxo que parece não caber mais na cartilha educacional das novas gerações. 

Sábado passado, fiz a festa de aniversário do meu aventureiro. Uma das lembrancinhas era um mini chicote, em referência ao Indiana Jones, tema da celebração. Percebi que alguns pais ficaram desconfortáveis com o objeto. Coisa doida! Mas não ficam irritados se os filhos tratam mal a empregada doméstica, os mendigos, os professores, os negros, os avós... Já dizia Caetano: “que pensamento torto!” 

Realidade é o que o filósofo Mário Sérgio Cortella afirmou numa palestra legal assistida na semana passada: “Os pais de agora criam terroristas. Primeiro, eles sequestram a própria família e, mais à frente, vão cometer sabe-se lá que delitos em sociedade.” É isso aí. Brincar de boxe não pode, mas não ter empatia pelo semelhante não tem nada demais. 

Levei muitas palmadas da minha mãe. Até com galho de goiabeira sofri lambadas nas pernas finas de moleca. Como já escrevi aqui: não me fizeram mal algum. Não recordo dessas sovas maternais com desgosto, pelo contrário, rio delas. Mas do esquecimento na escola, da ausência nas apresentações artísticas, sim, me ressinto. 

É por essas e outras que ouso afirmar: receber uns tiros de mentira, umas estocadas de plástico não deixam cicatrizes. Somente lembranças de uma infância divertida. 




Comentários

  1. Eu não vejo problema nenhum em brincar de polícia e ladrão.

    Mas vejo muito problema nas espadas de plástico, chicotes etc. Pela simples razão de que os pirralhos ainda não têm juízo. Umas estocadas de plástico não deixam cicatrizes? Nem sempre... Se pegar no olho, pode até cegar!

    Fogo, queima, e dependendo da queimadura a cicatriz vai ficar para sempre.

    E aí vem a turma dizer que é fatalidade...

    Precaução e caldo de galinha não fazem mal a ninguém!

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    1. Olá, Larinha!

      Só tem que tomar cuidado para que essa precaução não vire obsessão, né?
      Penso que a sua infância foi muito mais interessante por ter aprontado grandes aventuras na fazenda. Eram perigosas? Eram. A gente poderia ter se machucado? Poderia. Toda criança pode se machucar. Nenhum superpai ou supermãe pode proteger a criança do crescimento. E esse crescimento vem com machucados também.
      A sua filha já quebrou o cotovelo, não foi? E foi dentro de casa, né? Meus filhos já levaram pontos no rosto e foi na escola... É isso aí. A vida é assim.

      Claro que fogo queima, claro que espada de plástico, lápis, tesoura podem cegar. O importante é dizer isso para eles e não proibi-los de ter acesso a uma fogueira ou a um brinquedo. O que é proibido é muito mais desejado... Vide as adolescentes de pais superprotetores que engravidam aos 14 anos...

      Acidentes acontecem, sim, mesmo com todas as precauções. Mas concordo que muitas vezes poderiam ser evitados. O importante é não criar os filhos em bolhas de plástico. Correr riscos faz parte da vida. Eles nos ensinam até onde está o nosso limite. Também nos mostram que o medo é importante, pois ele pode nos preservar das tais "queimaduras" da existência.

      Abreijos,

      Lulupisces.

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  2. Concordo com vc, sempre compartilhei dessa opinião!!!!!!

    Quando os meninos começaram a me pedir armas de presente conversei com o Marcelo e ele me disse que sempre brincou disso e nem por isso é um assassino em série....eu sempre brinquei de lutas com os meninos(inclusive apanhei muito dos primos Bernardo e do Gustavo ... rsrsrsrs )e não virei sapatão...

    Mas exigimos respeito ao próximo, e pra sair da mesa de refeição tem que pedir licença... Ah e bênção também.

    Bjks,

    Marina Caldana

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  3. Lú,

    concordo com você! Também sou viciada em series policiais, filmes... Agora para uma criança, adolescente ou adulto se tornarem violentos não é porque brincou com armas ou de policia e ladrão. É porque a violência fez parte da dinâmica familiar dele, é isso o que faz pessoas violentas: viverem em ambientes de muita briga.

    Bjs,

    Renata.

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  4. Oi Lu, muito bom ler o seu blog na hora do almoço...
    E por falar em chicote , quando disse pro Beto que a lembrancinha que era o tal chicote,ele logo perguntou: "Pegou um pro seu filho querido?" Eu sorri e falei que era a lembrança dos coleguinhas do Romulito. Ele resmungou: "ahaaaaaaaaaa eu queria um!
    Coisa de Beto, parece que não cresceu e tem 31 aninhos!!! :)

    Beijos,

    tia Leila

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  5. Embora eu concorde com vc que muito do politicamente correto não segue bom senso, eu tenho que dar os meus "two cents" a respeito de criança e violência.O problema, na minha opinião, não reside no fato das crianças brincarem com armas de fogo,mas sim o que elas reproduzem apartir do que consomem da midia e de video games. eu acredito que hoje em dia, as crianças são muito mais expostas a violência do que fomos,o que as deixam menos sensíveis a assassinatos e atos de violência em geral. Em média, antes de encontrar no colegial, crianças vêem 8.000 assassinatos.E até os nove anos, as crianças têm dificuldade de distinguir realidade da fantasia. Sim, mesmo porque apenas apartir dos nove que as crianças começam a desenvolver melhor o "frontal lobe", parte responsável pela lógica e bom senso, que se forma completamente aos 25 anos, por isso que jovens e crianças são mais impulsivos e acreditam mais em mudanças(pois não têm abilidade de analisar com profundidade uma situação).E ainda acredito que o mais grave é que tipo de relacionamento a criança têm nas escolas. As crianças têm perdido a abilidade de se relacionar,pois muitas das brincadeiras e comunicação é eletronica e a socialização se dá desta forma ( ninguem sai na rua para encontrar os amigos, têm se playdates , tudo muito estruturado), os pais trabalham muito e têm pouco tempo para as crianças,e nas escolas, as crianças recebem bullying de todos os lados. E o modelo de se resolver conflitos é com violência , mensagem saturada na mídia e nos jogos. Daí que um simples chicote reinforça todo um ciclo vicioso. Que vc nem eu criou. Mas que a gente não considera tão ruim assim...

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    1. Cara Aline,

      você é a Aline do Davide? :)
      Bem, o lance, como eu disse, é manter as crianças conectadas com o real. A fantasia é fantasia e deve ser vivenciada, mas com um pé na realidade. Sim, o mundo é mais violento hoje. Mas os pais são mais omissos também. É mais fácil deixar a criança passar horas na frente da TV ou do game do que ir brincar com elas na rua...
      Brincar na rua, ao ar livre, é fundamental. Pode machucar? Claro! Mas eu não impeço meus filhos de correr, subir em árvores, subir em brinquedos do parquinho. Outro dia, um brinquedo do parque na escola dos meus filhos foi desativado porque uma aluna caiu dele e quebrou o punho. Ora, por favor!! Toda criança se acidenta na vida... Faz parte do desenvolvimento físico e emocional, até para saber os limites de cada um.
      Dá medo? Dá. Mas a gente, hoje em dia, está superprotegendo onde não deveria superproteger...
      Não vejo bullying por todos os lados nas escolas... Acho que briga de criança sempre existiu e sempre vai existir. O que eu acho é que os pais perderam a autoridade, obrigaram a escola a perder a dela e, desse modo, estamos vivendo sob a ditadura de crianças superprotegidas, egocêntricas e ditatoriais. Meninos e meninas individualistas pra caramba, consumistas e que nunca se colocam no lugar dos outros. Isso é mais grave do que brincar de polícia e ladrão ou levar uma chicotada no meio de uma brincadeira... Precisamos tirar o foco de coisas que não fazem de fato mau algum para iluminar as que realmente fazem.

      Um beijão e obrigadíssima pela participação aqui no blog.

      Lulupisces.

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    2. Aline,

      Concordo que as crianças tem dificuldade distinguir realidade e fantasia. Na primeira vez que brincam de espada, batem com outro com mais força que devem e acabam machucando. E da reclamação do amigo vem a percepção que uma coisa é a luta "real", dos filmes, nas quais um quer ferir ou machucar seu adversário. Na brincadeira é preciso cuidado para não machucar o outro. Da mesma forma, ao brincar em um brinquedo do qual ele se machuca ao cair, percebe que não é o super-homem, e que o perigo está ao lado.

      A prática não é a melhor maneira de aprender o que é realidade e o que é fantasia? Se privamos as crianças de todas as possibilidades de machucar, a si ou ao outro, elas perderão essa experiência importantíssima.

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  6. Amiga,...

    Gosto quando você se emociona no texto.Quando é humana e não filosofa. Quando conta o cotidiano sem maneirices literárias.
    A leitura é leve e a gente consegue surfar contigo na onda das letras.

    Parabéns.

    Davide

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  7. Excelente texto Lu...concordo que o mundo hoje é mais violento, pois os estímulos externos são mais fortes,os últimos acontecimentos vêm nos chocando, como uma criança de 13 anos , planeja a morte dos pais e a sua própria, vai saber o que rolou naquela cabecinha e carinha de anjo...estou pasma, para citar somente 1 caso dentre muitos,assusta, né? Não sou a favor de dar armas de brinquedo para as crianças, embora ache que isso não leve necessáriamente a um futuro assassino ou psicopata, o buraco é mais fundo, a estrutura familiar fortalecida pelo amor, respeito,espiritualidade, limites e por vai, isso sim conta, mas penso que possa sim, em algumas cabecinhas influenciar a violência e torná-la banal, é isso que temos visto a cada dia mais forte.A mente humana é extremamente influenciável, porém sou contra qualquer radicalismo,penso que não devemos proibir nossos filhos,netos a brincar de polícia e ladrão,criar o seu mundo de fantasias... brinquei muito com meus irmãos, e todos tiveram aquele revólver preto da Estrela com espoletas,eu simplesmente adorava...mas deve-se ter o cuidado sim, de conversar alertando a criança de como pode ser a fantasia e a realidade.
    Beijo grande...Namastê!
    Cynthia

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  8. É isso aí! Eu também me vejo, inúmeras vezes, vítima dessas situações...
    Também acho uma bobagem esse tipo de preocupação das pessoas. Aliás, toda nossa infância vem sendo depreciada pelo tal politicamente correto...
    Acredita que outro dia a Letícia estava cantando o atirei o pau no gato politicamente correto? Não acreditei. Quase reclamei na escola.
    Ah! E eu tb fui esquecida váaaarias vezes na escola, e tb estudava de tarde... kkk via escurecer, e nada da minha mãe... Traumatizei.

    Ana Claudia.

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  9. Bom texto pra reflexão, Loo.

    Eu não sou chegada nas brincadeiras violentas não, mas quando elas são definidas, do tipo bem contra o mal e o mal tá levando a pior, acho que tem um conteúdo psicológico necessário, que, segundo minhas leituras para a monografia, é importante, mesmo sendo maniqueísta, na formação da personalidade infantil, quando a criança faz a referência do que é correto e do que não é. Então, na brincadeira de polícia e ladrão, ela aprende, inconscientemente, que são dois lados da vida, em que roubar não pode e que a polícia está aí para proteger os cidadãos honestos - ainda que às vezes não seja essa a realidade, mas aí já não é discussão para cabecinhas de 5 anos. E quando as armas são nitidamente de brinquedo, menos mal ainda, arma com aparência de verdadeira, cruz-credo. Quanto ao mais, concordo inteiramente. A diversão das brincadeiras de mocinho e bandido é a aventura, não é a violência, a não ser quando a violência vem de outro contexto na vida da criança.

    Beijos,

    Má.

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    1. Acredito que poucas meninas/mulheres são chegadas em brincadeiras violentas, mas fazem parte do universo testosterônico masculino. Acho, inclusive, que são fundamentais para a formação da masculinidade plena. Mas aí estou entrando numa seara psicológica/médica do puro achismo mesmo. Obrigada pela contribuição sempre inteligente, aMáda Marisa Reis.
      O lance é permitir que os filhos experimentem, sem superproteção ou preconceitos. O tal muro de escalada que o Rômulo tanto queria na festa... Ele mesmo só foi uma vez. Disse para mim: "achei muito alto, fiquei com medo". Pronto. Testou os limites dele e viu que não era tão interessante assim. Eu vou mais por aí...

      Abreijos,

      Lulupisces.

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  10. Li e gostei bastante. Vc acredita que também fui esquecida no Notre Dame?
    A gente transitava sempre pela casa das irmãs, elas adoravam minha irmã pequena.

    Beijo,

    Marina.

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  11. Bem, o Vítor, na idade do Rômulo, não iria nuuuunca. Mas agora foi, como vc me disse, oito vezes! Tudo tem seu tempo… Mas eu também acho que tem brincadeiras aventureiras masculínicas (ou não, depende da falsa lady que cada um tem em casa, que não precisam por isso ser violentas, como a escalada mesmo. A violência é uma coisa separada da aventura, não é?
    Enfim, infelizmente o mundo é violento, e eles estão nesse mundo. Só acho que não é necessário que absorvam mais violência dentro de si do que o que já estiver por ali, porque cada um deve ter um nível dela. Se a gente puder não estimular, acho melhor. Mas se for uma forma de ajudá-los a lidar com ela… O difícil é saber esse limite, né? Mas afinal, o que não é difícil em educar filhos?…
    Mas com isso não estou dizendo que sou contra o chicote não, ele estava totalmente dentro do contexto Indiana Jones! Se a festa tivesse sido sobre a libertação dos escravos, teria sido altamente horroroso, né não? Como você disse, trata-se de conversar com a galerinha para torná-los conscientes das coisas.

    Megabeijo,

    Má.

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