Amor de raiz





Meu encontro com ela é quase diário. Procuro me sentar sempre à sua frente. Não gosto de perder nenhum detalhe das mudanças sutis na aparência dela. Entretanto, os anos passam e ela continua solene, refrescante, viva. Invejo essa persistência. Essa obstinação. Já pensei tanto em desistir...

Nosso relacionamento é platônico e silencioso. Para ser realmente franca, aposto que ela nem sabe que eu existo. É um amor de mão única. Duvido que ela perca o tempo dela em observar as mudanças sutis em minha aparência. Ela deve ter mais o que fazer do que ficar me espiando na hora do almoço. 

Se me fitasse, o que diria de mim? Ganhei peso, cabelos brancos, fios ressecados. Minha pele, antes viçosa, agora sofre com acnes tardias. Minhas idades avançam impiedosamente. Para ela, um ano parece um dia; cinco anos, um mês.

Acredito que, assim como eu, ela já passou dos 40. Todavia brilha como se adolescente fosse. Brotinhos renascem de seu corpo robusto a cada primavera. Seiozinhos de menina-moça. 

Os meus já estão na mamografia, densos, pesados. Os ombros doem de suportá-los. Que seria de mim se tivesse que ficar com os braços erguidos para o alto por tanto tempo como ela? Os exercícios de yoga me estafam; a rotina me paralisa. Porém, ela está todo dia lá, impávida e colossal. Não se importa em não cometer loucuras. 

Os anos lhe fazem cócegas enquanto em meu cérebro me falham a memória. Já tenho algumas rugas, muitas manchas. A energia vital sangra... A dela: singra o céu. Ela é natural e eu já recorro aos artificialismos para preservar uma juventude perdida. 

E a maior insensatez nessa comparação incomparável é que eu vou morrer e ela ainda vai permanecer verdejante por novas safras. Até encontrar outra amante de sua figura elegante e sólida. Alguém que vai lhe admirar nem tão de perto, mas também não tão de longe, por meio do vidro desses prédios datados de modernidade.

Uma pessoa que vai procurar ser como ela: cada dia menos parede, cada dia mais árvore. 

Comentários

  1. Bonito mana,
    mas como uma árvore frondosa e fértil, que se renova a cada ano e se perpetua pelos tempos, todos nós temos a nossa beleza e força, qualquer que seja a nossa idade ou aparência ou o nosso tempo de nossa passagem pela terra. O que temos mesmo que fazer, é não ficar refém desse absurdo e cruel culto à juventude eterna e somente à ela atribuir virtudes e beleza.
    Esta é uma armadilha da qual temos que fugir com todas as forças da sensatez e com a sabedoria e serenidade que nos traz os anos vividos.
    Há beleza e aprendizado, em nós mesmos e em cada coisa que nos cerca. É parar, ver, refletir, locupletar-se com as descobertas e seguir em paz ...

    Grande abraço,

    Nena.

    ResponderExcluir
  2. " a vida não começa com o nascimento e nem termina com a morte..." viemos aqui para colher experiências e cada um a seu tempo retornar e umir-se à Chama Divina.
    Tenho curtido muito essa nova etapa da minha vida,56 anos!!! cada ruga, cada fio de cabelo branco,uma lembrança,uma alegria,uma tristeza, uma saudade, tudo faz parte...mais serena, consigo enxergar uma beleza que antes não via, pois ainda estava muito preocupada com as aparências, muita cobrança dentro e fora , apelos mil para que estejamos belas, às vezes loiras, cabelos lisos, corpo sarado e por ai vai...hoje não existe lugar para essa cobrança, aprendi a curti o momento que chega com muito aprendizado, sem cobranças, assim é tão bom viver...assim nos renovamos, nos revitalizamos como elas, as árvores, lindas, majestosas, por mais antigas que possam ser.Amo árvores...amo você Lu!
    Namastê!

    ResponderExcluir
  3. Belas reflexões! Eu a conheço pouco e através desse texto me permito afirmar que és um um belo Ser Humano! 🌷

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Ousadia

Presentim de Natal

Horizonte de Eventos