Tatu com Cobra


"O Tatu Dragão e Sua Cobra", guache sobre cartão de Chico da Silva


Era quase uma adolescente quando vi uma mesa de café da manhã nordestina pela primeira vez. Foi uma revelação de que a vida podia ser opulenta e afável. Até então, todo o meu universo era contido, até áspero, como as histórias de Cora Coralina. Goiás tem uma alma um pouco avara, de carestia. Ainda que não seja pobre, é simples, básica e espartana. Uma consciência de que se é possível sobreviver com pouco, para que ter mais.

Não há espaço para as metáforas no imaginário goiano. Cresci numa família literal. A vida exige praticidade. Os bolos são de fubá ou, no máximo, o mané pelado (de mandioca). Bolo de bolo, um café preto. Às vezes, uma broa ou um biscoito frito de polvilho com queijo. A pamonha só na época da safra de milho.

Acho que as comidas que ofertamos ou cozemos traduzem um bocado do que somos. Aquelas mesas nordestinas repletas de opções quentes e frias, um banquete diário, são o próprio cerne hospitaleiro e afetivo dos baianos e piauienses. Provavelmente de todo o Nordeste, uma região que se forjou à base da doçura da cana-de-açúcar. Não que o melado escorresse para a senzala, muito pelo contrário. Mas não estou aqui para evocar Gilberto Freyre.

A vontade de reunir o clã para boas prosas em torno da abundância deixava a menina surpresa e feliz quando estava de férias nas bandas de lá. Banana da terra e abóbora cozidas, fruta-pão, bolo de goma, atas, caldinhos diversos, cuscuz, carne de sol matinal, pão de “massa fina”, pão de “massa grossa”, mungunzá… Opulência gastronômica lá em casa somente nas datas especiais: Natal, Páscoa e Dia das Mães. No dia a dia, só a comida de subsistência mesmo. 

Nem no Rio de Janeiro, cidade que sempre visitava com a madrinha, ela experimentava essa vontade de servir e de ser servido com cores e sabores múltiplos a cada manhã, a cada almoço e a cada lanche da tarde, como sói ter os nordestinos. 

Ontem, meu amigo piauiense afirmou: “me desculpe, acho que vai ficar chateada, mas as festas juninas de Brasília são uma bosta!”. HaHaHa, como comparar com as verdadeiras festas sertanejas? Claro que são. Ninguém bate o Nordeste em matéria de calor humano e folia regados a comidinhas confortáveis.

As casas dos goianos, ainda que sejam “bem de vida”, são simplórias. A mentalidade de escassez, de parcimônia, é a tônica. Decoração, pra quê? Mamãe vivia num dos bairros mais elegantes da capital federal sem quadros e sem aparelho de som. Era algo completamente inimaginável para mim. Insisti muito para que comprasse umas telas, coisa que fez sem dar a mínima bola, provavelmente para a caçula parar de lhe encher o saco.

Sintomático que dois amigos goianos tenham me dito, em ocasiões distintas: “acho que minha casa é mais decorada por você do que por mim”, de tantos presentes que lhes dei para aplacar o branco excessivo do apê de ambos.

Conjecturo que o espírito goiano não tem paciência para firulas e rapapés. É um pé de boi. O do nordestinos é um vestido de chita, uns bonecos de barro delicados. Deve ser por isso que a música de raiz do Goiás tem chifres (de todos os tipos), curral, terra vermelha, botinas e botinadas. É uma música sem adereços, que diz ao que veio. Do Nordeste, ainda que falem do sofrimento sertanejo, tem flor de mandacaru nos cabelos das moças. É alegre em sua essência rítmica de xotes, de baiões e de frevos. 

Não pensem que estou renegando minhas origens. Gosto muito da minha parcela goiana. Me identifico 100% com ela. Aqui são apenas digressões sobre as diferenças na amálgama de dois povos que, em Brasília, se mesclam e dão o tom dessa mistura de tatu com cobra. Metade esquiva e caipira a la goianos. Metade matreira e resiliente tal qual os nordestinos.

P.S.: a expressão popular tatu com cobra faz referência a pessoas sem vontade, sem garra, porém, sempre ouvi mamãe utilizá-la como “mistura esquisita ou coisa que não tem nada a ver uma com a outra". É nesse sentido da memória afetiva que me valho nessa crônica.


Comentários

  1. Você tem uma doçura, uma precisão na descrição dos seus contos que me fascinam. Texto maravilhoso e cheio de verdades que a gente muitas vezes, vê e não percebe. Somente uma pisciana como você para descrever algo tão óbvio e de forma tão lúdica ��♥️ Tens uma fã!

    Anna Luiza

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  2. Nordestino tem é bom gosto para comida, decoração e música. Olhar delicado de pisciania pra notar isso rsrs

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  3. Muito bem. Somos assim abundantes e variados.

    Thiago Dória

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  4. A autora do texto começou mau, chamando a obra da Cora Coralina de áspera, acho que não! A 9bra dela é sensível, delicada e até revolucionária para uma poeta do interior
    É dura em alguns momentos porque a vida das mulheres do interior nunca foi doce. Penso que ela diminui a culinária goiana quando diz no máximo um biscoito frito, uma brota ou um bolinho de fubá e comete o disparate de falar do mané pelado ( talvez o bolo mais gostoso de todos que.já comi), ela desdenha da culinária goiana. Adoro o bolo de rolo (verdadeira iguaria do nordeste), acho.ruim a comparação porque a memória afetiva fala muito alto. A culinária goiana tem muito em comum com a mineira o que mostra que são apreciada no País inteiro. Eu iria mais longe ainda dizendo que a questão histórica de colonização e miscigenação das religiões tem que ser melhor estudada. O vôo dela é muito raso.

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  5. Em tudo um olhar muito poético e real... Fã número 1: euzinha!

    Cynthia Chayb

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  6. Qdo vier por aqui, vou te levar pra um café nordestino.

    Thalynni

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  7. Ô se sei! Tive um namorado goiano que me levou pra Goiânia e, na casa dele, a mãe tinha feito o quarto pra nós dormirmos juntos - bem literal, como vc caracterizou, Lu! Faremos isso qdo os nossos vierem com as namoradas?? Dura questão, hein!! Mas era um apto de classe média perto do Zoológico, bem arrumadinho com mimos da mãe. E fizeram aquela galinhada com pequi que eu gamei... E me levaram num kilo comer guariroba, que nem estranhei o amargor, gamei tb...

    Elisabeth Ratz

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  8. Lu, parabéns. Precioso! Vc escreve bem demais e é muito observadora.
    Beijos,

    Ana Cecília

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  9. Perfeita descrição. Nordestino, embora com alma sofrida, demonstra à mesa e na cultura motivos para se alegrar. Goianos por sua vez, se acuaram com as mazelas da vida. Duas culturas ricas e peculiares. Grande afinidade pela nordestina, mas as vzs me pego meio goiana. (Querendo só um cadin de frango com pequi e o marasmo de uma roça). Mas de fato, São João nordestino não tem 'pareia'.

    Bjs, Lu.

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    1. Ah, eu sou muito goiana de frango com pequi e do marasmo na roça. Totalmente. Só gostaria de ser menos chucra, mais afetiva e hospitaleira como os nordestinos.

      Abreijos e obrigada pelo comentário,

      Lulupisces.

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  10. Que texto lindo. Sou mais nordestina que goiana, dentro da minha carioquice. Gosto de cor na casa, nada paredes, no chão.

    Renata Gonzaga

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  11. De pequenos prazeres constitui numa mesa bem postas de goloseimas 🥂

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  12. Que texto saboroso. Que tempero de prosa!

    André Ricardo Aguiar

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